terça-feira, 29 de março de 2011

Os 7 sábios

Sobre o que significava ser um sophos na Grécia arcaica, uma boa leitura introdutória é

NIGHTINGALE, Andrea Wilson (2000) "Sages, sophists, and philosophers: Greek wisdom literature" In: TAPLIN, Oliver (org.) Literature in the Greek and Roman Worlds: A New Perspective. Oxford: Oxford University Press

Sobre os '7', leia:

MARTIN, Richard P. (1993) "The seven sages as performers of wisdom". In: DOUGHERTY, Carol; KURKE, Leslie (org.) Cultural Poetics in Archaic Greece. Cambridge: Cambridge University Press

"Epitaphios logos" de Péricles em Tucídides

Primeiros parágrafos da oração fúnebre:
34] Neste mesmo inverno, os ateniense, fazendo uso do seu costume tradicional realizaram, do seguinte modo, os funerais públicos dos que morreram primeiro nesta guerra. 2. Após construir uma tenda, expõem os ossos dos que se foram durante dois dias, e cada um faz oferendas ao seu se quiser. 3. Quando ocorre a procissão, carros conduzem caixões de cipreste, um de cada tribo: neles estão os ossos dos mortos da tribo à qual cada um pertencia. Um esquife, arrumado, é conduzido vazio para os desaparecidos, os quais não foram achados para serem recolhidos.

4. Acompanha quem quer, da cidade ou estrangeiro, e mulheres que são parentes estão presentes até o túmulo, entoando lamentos. 5. Depositam-nos, então, no cemitério público, que se encontra no mais belo subúrbio da cidade, e no mesmo sempre enterram os que tombam na guerra, salvo os de Maratona: como julgaram sua excelência notável, fizeram o túmulo lá mesmo. 6. Quando os enterraram na terra, um homem escolhido pela cidade, o qual não parece ser estúpido quanto ao seu entendimento e se distingue por seu valor, enuncia-lhes um elogio conveniente.

7. Depois disso, partem. Desse modo enterram. Ao longo de toda a guerra, sempre que ocorresse isto, faziam uso do costume. 8. Assim, para estes primeiros, Péricles, filho de Xântipo, foi escolhido para falar. Quando chegou a ocasião, indo do túmulo à tribuna, alta para que fosse ouvido pela maior parte possível da multidão, falou desse modo:

35] "A maioria dos que já falaram aqui louvam quem adicionou esse discurso ao costume, porque é belo que ele seja pronunciado para aqueles que são enterrados por causa das guerras. Para mim, porém, teria parecido ser suficiente, de homens que se tornaram valorosos graças à ação, serem exibidas, por meio de uma ação, as honras (scil. que lhes cabem), como as que agora vedes terem sido preparadas pela cidade nesse funeral; e que as virtudes de muitos por um único não sejam ameaçadas, quer fale bem ou mal, ao ser acreditado.

2. É duro falar na justa medida quando a representação da verdade é dificilmente confirmada. Ao passo que o ouvinte que testemunhou e é benevolente talvez considerasse que algo é mostrado de forma insuficiente em relação àquilo que ele quer e conhece, o inexperiente, que algumas coisas são exageradas – por causa da inveja, se ouvisse algo superior à sua própria natureza. Os elogios enunciados acerca de quaisquer outras pessoas são suportáveis até o ponto que cada um, ele mesmo, crê ser capaz de fazer algo daquilo que ouviu: ao sentirem inveja do que é excessivo neles, 3. passam então a não acreditar. Já que essas coisas, reconhecidas como boas, foram aprovadas pelos antigos desse modo, é necessário que também eu, seguindo o costume, tente alcançar desejo e opinião de cada um de vós tanto quanto possível.

36. Começarei pelos antepassados em primeiro lugar: com efeito, é justo e também adequado, nesta ocasião, que a eles se confira a seguinte honra da lembrança. Essa região, que os mesmos homens, numa sucessão de descendentes, sempre habitaram, até esse momento, graças à excelência deles, foi transmitida livre. 2. Se eles são dignos de louvor, mais ainda nossos pais: depois de adquirir, em adição àquilo que receberam, o domínio (arkhê) que temos, não sem esforço o legaram a nós, os de hoje. 3. A maior parte dele nós mesmos, os que ainda hoje, aproximadamente na meia-idade, estão vivos, desenvolvemos, e a cidade, em todos os sentidos, tornamos muito auto-suficiente (autarkês) tanto para a guerra quanto para a paz.

4. Quanto a mim, as ações que eles e nós executamos durante as guerras, os modos pelos quais cada coisa foi conquistada, se nós mesmos ou nossos pais rechaçamos, com zelo, o inimigo agressor, bárbaro ou heleno – isso deixarei de lado, pois não quero ser prolixo entre pessoas que conhecem; todavia, a partir de que princípios chegamos até esses recursos, com que instituições (politeia) e por causa de que modos de ser eles tornaram-se grandes, isso evidenciarei por primeiro até chegar ao louvor desses aí, considerando que não seria inconveniente, nas circunstâncias presentes, que essas coisas fossem mencionadas e que é útil que toda a multidão, composta tanto por cidadãos quanto por estrangeiros, preste atenção nelas.

37. Com efeito, utilizamos uma forma de governo (politeia) que não emula as leis dos nossos vizinhos, e nós mesmos muito mais somos exemplo para algum do que imitamos outros. Quanto ao nome, pelo fato de não ser administrada (oikein) para poucos, mas para a maioria, democracia ela é chamada; compartilham, todavia, quanto às leis, para as contendas privadas, todos a igualdade, mas, por outro lado, quanto ao mérito (axiôsis), como cada um é reconhecido por alguma coisa, é preferido para as coisas públicas não devido à sua categoria (meros) mais do que devido à sua excelência (aretê), nem, inversamente, quanto à pobreza, se puder fazer algo de bom para a cidade, é impedido devido à obscuridade do seu prestígio (axiôma).

2. Vivemos na cidade (politeuein) livremente (eleutherôs) tanto no que diz respeito às questões públicas quanto em relação à suspeita de uns contra os outros relativa às atividades diárias, não tendo raiva contra o vizinho, se ele faz algo a seu bel-prazer, nem estampando irritação, inócua, porém aflitiva, no semblante. 3. Mesmo mantendo relações privadas sem restrições, nas questões públicas, graças a um medo arrazoado (deos), certamente não agimos contra a lei, devido à obediência a quem esteja ocupando, em qualquer momento, um cargo e às leis, sobretudo àquelas que são estabelecidas para o auxílio dos injustiçados e àquelas que, mesmo não sendo escritas, implicam uma sanção com a qual todos concordam.

domingo, 27 de março de 2011

Avanço de um deus sobre jovem de um coro de Ártemis

O exemplo é iliádico (Il. 16, 179-86); trata-se da mãe de um dos comandantes mirmidões:

Outra comandava o belicoso Eudoro,
de mãe solteira ('parthenios'), a quem gerou Polymele, bela na dança ('khoros'),
filha de Fylanto; por ela o forte Matador-da-serpernte (sc. Hermes)
apaixonou-se, após com os olhos a ver entre dançarinas ('melpomenai')
no coro ('khoros') de Ártemis roca-dourada, a ruidosa.
De pronto subiu ao quarto e junto deitou-se às ocultas
o benéfico Hermes, e deu-lhe um filho radiante,
Eudoro, notável como lesto corredor e combatente.

sábado, 26 de março de 2011

Teógnis e a cidade com problemas: cidadãos ou líderes vis?

A mim Faraone (2008) convence que as passagens da Theognidea abaixo (respectivamente, 39-48 e 53-62) perfazem duas estrofes onde a segunda foi composta como uma resposta à primeira num contexto simposial. Se na primeira o problema da cidade são seus líderes, na segunda o problema está em um grupo de cidadãos.

Cirno, esta cidade está grávida, e temo que dê a luz a um varão
  endireitador da nossa vil desmedida.
Esses cidadãos ainda são prudentes, mas os líderes
  se voltaram a uma grande queda rumo à vileza.
Nunca a uma cidade, Cirno, bons varões destruíram,
  mas quando apraz aos vis serem desmedidos,
aniquilam o povo e conferem sentenças aos criminosos
  por conta de lucros privados e poder,
não espere que essa cidade muito tempo fique estável,
  mesmo que agora jaza em muita tranquilidade...

Cirno, esta cidade ainda é cidade, mas outro é o povo,
  os que antes nem costumes nem leis conheciam,
mas em torno das costelas couro de cabras usavam
  e fora da cidade como cervos moravam.
Agora são valorosos, Polypaida; quem antes era distinto,
  agora é reles. Quem suportaria ver isso?
Enganam-se mutuamente e riem uns dos outros,
  não conhecendo as marcas dos vis nem dos valorosos.
Desses cidadãos, Polypaida, não tornes nenhum teu amigo
  do peito por conta de alguma necessidade.

Tematicamente, o conjuto das duas estrofes relaciona-se, tematicamente (cf. 'referencialidade tradicional') a Sólon 4 W.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Dísticos elegíacos na 'Andrômaca' de Eurípides!

Abaixo, um trecho em dísticos elegíacos (a única nas tragédias supérstites) da Andrômaca de Eurípides, onde a viúva de Heitor lamenta sua sorte presente como escrava de gregos. A maioria dos intérpretes concorda hoje com a tese de Denys Page (1936) de que essa passagem é baseada num tipo de canto comum no norte do Peloponeso, um lamento em versos elegíacos, ao qual se referiria o termo que só tardiamente aparece nas nossas fontes, elegos.

À escarpada Ílion, Paris, não como bodas mas perdição,
  levou Helena, boa para o leito, para o tálamo.
Por causa dela, Troia, a ti, por lança e fogo capturada,
  tomou o Ares veloz, mil-naus, da Hélade
e ao marido meu, eu, infeliz, Heitor, a quem em volta do muro
  o filho da marinha Tétis arrastou, conduzindo o carro;
eu mesma do tálamo fui levada à orla do mar,
  jogando a odiosa escravidão em volta da fronte.
Muita lágrima me desceu pela face ao deixar
  cidade, tálamo e marido na poeira.

Ai de mim, eu, infeliz, por que deveria olhar para a luz
  como escrava de Hermíone? Molestada por ela, suplicante
junto a essa estátua da deusa, os braços em volta jogando,
  esvaio-me como uma fonte borbotante na pedra.

Outros textos da bibliografia que discutem a passagem são Nagy (2009) e Faraone (2008). Eu somente traduzi o trecho em dísticos elegíacos, mas a passagem deve ser pensada a partir do contexto onde está embutida. Agradeço ao Rafael, que me indicou o instigante texto do Nagy.

Tirteu 11 West (8 Gentili-Prato)

Vamos, pois da cepa do invencível Héracles sois,
  coragem, Zeus ainda não virou o pescoço:
nem multidão de homens temei, nem fugi;
  direto rumo à vanguarda, o varão tenha seu escudo,
odiosa a vida considerando e da morte as negras
  sinas, amigas, como os raios de sol.
Pois sabeis que os feitos de Ares muito-choro são infernais,
  bem aprendestes a índole da penosa guerra,
com fugitivos e perseguidores estivestes,
  jovens, e de ambos vos saciastes.

De fato, os que ousam, ficando um junto ao outro,
  dirigir-se ao corpo-a-corpo, à vanguarda,
a minoria morre, e salvam a tropa atrás;
  de varões que se afastam, toda a excelência se extingue.
Ninguém, um dia, um relato completo faria de cada um,
  de todos os males, se sofrer o vexame, que o varão atingem.
É aflitivo rasgar por trás as costas
  do varão em fuga na guerra hostil.
É vexatório o corpo postado na poeira
  no dorso, atrás, por ponta de lança atingido.

Vamos, cada um, pernas afastadas, aguente com ambos os pés
  firme sobre a terra, o lábio com os dentes mordendo,
pernas, coxas abaixo, peito e ombros
  com o ventre do largo escudo tendo coberto;
na mão direita empunhe a firme lança,
  e mova a crina assombrosa sobre a cabeça:
realizando feitos ponderosos, que ele aprenda a guerrear,
  e, com o escudo, não finque o pé longe dos dardos.

Vamos, cada um, achegando-se no corpo-a-corpo com longa lança,
  ou mate, com espada ferindo, o varão hostil,
pé junto a pé tendo posto e, contra escudo, escudo apoiado,
  em adição crina contra crina, elmo contra elmo,
peito contra peito, e, próximo, combata o varão,
  após pegar o cabo da espada ou a grande lança.
E vós, mal armados, cada um sob o escudo de outro
  agachando-se, atirai grandes penedos,
com lanças polidas acertando os mesmos,
  perto dos bem armados, firmes de pé.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Tirteu 10 West (6/7 Gentili-Prato)

É belo, com efeito, ter morrido quem na vanguarda caiu,
   o varão valoroso que pela sua pátria combate;
um homem deixar sua cidade e copiosos campos,
   e mendigar, nada incomoda mais,
vagando com sua cara mãe e o velho pai,
   com seus filhos pequenos e a esposa legítima:
odioso será entre aqueles que encontrar,
   à carência cedendo e à hedionda pobreza,
envergonha a linhagem e desmente a radiante formosura,
   e desonra completa e vilania seguem.

Se assim , vê, pelo homem que vaga consideração alguma
   existe, nem respeito pela linhagem futura,
com coragem por essa terra peleemos e pelos filhos
   morramos, não mais preocupados com nossas vidas.
Jovens, peleai ficando um ao lado do outro,
   não começai infame fuga nem pânico,
mas produzi grande e bravo ânimo no espírito,
   e não amai a vida ao combater varões.
Aos mais antigos, cujos joelhos nunca foram leves,
   deixando para trás – os anciãos –, não fugi.

Sim, isto é feio, tombar entre os da vanguarda
   e jazer, varão mais velho, diante dos jovens,
com branca cabeça e grisalha barba,
   o bravo ânimo exalando na poeira,
com ensanguentadas vergonhas nas caras mãos –
   isso é feio e indigno de se ver com os olhos –
e a pele desnuda: aos jovens de todo convém,
   enquanto tem a radiante flor da desejável juventude,
para os varões admirável de se ver, desejável para as mulheres
   enquanto vivo, e belo após cair entre os da vanguarda.

Mas cada um, pernas afastadas, aguente com ambos os pés
   firme sobre a terra, o lábio com os dentes mordendo.

Por que um rei arrisca sua vida?

No canto 12, o lício Sarpédon, filho de Zeus, instiga seu companheiro para a batalha desse modo:

"Glauco, por que então somos sobremodo honrados (tetimêmestha)
com um assento, carne e cálices cheios
na Lícia, e todos nos veem como deuses?
Dispomos de grande domínio (temenos) nas margens do Xantos,
belo, com pomar e lavoura carregada de trigo.
Por isso agora carece, entre os lícios da vanguarda,
fincar o pé e encarar o combate abrasador,
para que assim falem lícios com sólida armadura:
‘De fato, não sem glória (aklees) chefiam a Lícia
nosso reis, comem gordas ovelhas
e seleto vinho meloso; mas também há força
distinta, pois pelejam entre os lícios da vanguarda.’
Querido, se pudéssemos os dois escapar dessa guerra
e fôssemos para sempre sem velhice e imortais,
eu mesmo não pelejaria entre os da linha de frente
nem te enviaria à peleja gloriosa (kudianeira).
Mas agora, pois as sinas de morte estão sobre nós,
milhares, das quais é impossível mortal fugir ou escapar –
vamos: ou estenderemos triunfo (eukhos) a alguém, ou ele a nós."

Sarpédon faz uma pergunta acerca dos fundamentos da timê, ou seja, dos privilégios materiais dos reis. Trata-se de uma pergunta retórica, ou seja, há uma resposta óbvia para Sarpédon, Glauco e o público dos poemas? O texto não deixa claro. Certamente Sarpédon diz que tal timê tem um preço: a luta na linha de frente. Entretanto, na sequência, ele diz que tal atitude tem uma outra motivação: a de que os lícios falem bem deles, repetindo que os reis possuem kleos.

O texto sugere que há um círculo (vicioso?) entre o status do rei e seus privilégios – o rei come bem porque é rei e é rei porque come bem –, sendo que somente na guerra algo distinto e valoroso é percebido. A sequência de imagens talvez sugira que timê e kleos sejam distintos, já que uma interpretação possível do trecho é que a única razão para participar da guerra é a imortalidade implicada no kleos, com o que fica subentendido, adicionalmente, que, mesmo sem a participação em guerras, as timai do rei permanecem.

Tendo em vista, porém, que não parece haver um valor em si na labuta guerreira, o texto não nos consegue convencer que o kleos seja uma grande compensação pela morte que a todos ronda.

Uma excelente discussão sobre a passagem da Ilíada é o artigo de Teodoro Assunção (2008) "Boa comida em banquetes como razão para arriscar a vida: o discurso de Sarpédon a Glauco (Ilíada XII 310-28)". Nuntius Antiquus 1: 1-17

Pietro Pucci (1997: 56) é o único intérprete que conheço que nota que o texto é estranho: não é estabelecida a conexão lógica precisa entre a timê e a consciência do dever. O texto desvia da timê e evoca os olhares que os lícios dirigem ao rei. A dificuldade nesse ponto é que a questão "por que somos tão honrados..." não é respondida pela sugestão direta que honras régias trazem o dever de lutar, mas a questão é transformada na evocação das expectativas dos lícios, que não esperam que o rei se comporte bravamente em virtude de sua timê, mas devido ao seu kleos, quer dizer, sua imagem heróica régia.

Pucci (p. 57ss.) explora as particularidades sintáticas da passagem e a menção irônica dos banquetes reais para chegar à conclusão de que não podemos precisar o que Sarpédon pensa das suspeitas dos lícios. As premissas da Ilíada, entretanto, sugerem que ele considera um dever fazer com que suas atitudes correspondam à imagem que dele se tem. O que ele sente é aidôs. Sarpédon considera um dever consubstancializar a posteriori o retrato que têm dele os lícios. No final das contas, seu alvo de comportar-se a posteriori como seu retrato prescreve é gratuito. Ele não produz razões. Determinantes são apenas as premissas ideológicas da poesia épica. É a ausência de motivação que marcaria suas ações.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Discursos 'tis': uma voz anônima na poesia épica

"Actual tis-speeches": assim Irene de Jong (cf. p. 63-4 no comentário à Odisseia) refere-se a um tipo de discurso que é posto na boca de "alguém" (tis) mas expressa, na verdade, "os sentimentos coletivos de um grupo". Esse tipo de discurso (geralmente não longo) encontra-se nos dois poemas; são 14x na Odisseia, 11x falados pelos pretendentes.

Aviso aos alunos de épica

Todas as noções formais e estruturais relativas à poesia podem ser encontradas no glossário do comentário narratológico da Irene de Jong; em relação à aula de hoje (D), por ex., estão lá, entre outros: ring-composition; parallel form; embedded story; simile etc. O comentário da de Jong, embora não seja exatamente jovem (a bibliografia que contém vai até 1997), é bastante informativo sobre tudo que se produziu antes. Além disso, as referidas definições são bastante claras e razoavelmente precisas.

Poesia e os pré-socráticos

A polaridade poesia x prosa e filosófico x poético parecem evidentes para nós ao pensarmos no corpus de fragmentos dos filósofos (lembre-se que ‘filosofia’ e ‘filósofo’ no sentido técnico, restrito, só começam a ser usados depois dos séculos em que esse sábios atuaram). Sobre as intersecções entre esses dois grupos, um texto bastante elucidativo é o seguinte:

MOST, Glenn W. (1999) "The poetics of early Greek Philosophy". In: LONG, A. A. (org.) In: The Cambridge companion to early Greek philosophy. Cambridge: Cambridge University Press

Oxyrhynchus e papiros

Oxyrhynchus foi uma cidade no Egito. A principal parte da cidade preservada em condições próximas do ideal até o século 19 foram seus depósitos de lixo. Os papiros preservados aí são restos de documentos e livros, além de listas de compras, cartas etc.

Mais infos sobre Oxyrhynchus e sobre a papirologia (uma ciência recente, da 2a metade do séc. 19) e papiros de forma geral, bem como cópias de papiros on-line, cf. nos sites abaixo:

http://www.papyrology.ox.ac.uk/

http://www.lib.umich.edu/papyrus-collection/select-bibliography-papyrology

terça-feira, 22 de março de 2011

Arquíloco: elegia / fragmento elegíaco 13 W

Nenhum cidadão, Péricles, para nosso luto dorido
     censurar, se deleitará com a festa, nem a cidade.
Pois desse jaez os que a onda do mar mui ressoante
     engoliu; inchados, com dor, temos
os pulmões. Mas os deuses para males incuráveis,
     ó amigos, estipulam vigorosa resistência
como droga. Ora um, ora outro está assim. Agora para nós
     voltou-se, e a ferida em sangue plangemos,
e outra vez atingirá distintos. Mas rapidamente
     resisti, afastando a aflição feminina.

Análises formais e estilísticas demonstram que esse fragmento compõe uma unidade muito bem construída; os dois elementos principais da elegia estão presente: a reflexão e, no fim, a exortação.

Isso não significa necessariamente que se trate de um poema completo. Se Faraone está correto no modo como postula a "estrofe" elegíaca, dependendo da ocasião de performance e do performer, o fragmento poderia ser citado como um poema integral ou integrado em uma composição maior.

FARAONE, Christopher A. (2005) "Exortation and meditation" CP 100
―. (2005) “Catalogues, Priamels, and Stanzaic Structure in Early Greek Elegy". TAPA 135: 249-266
―. (2008) The Stanzaic Architecture of Early Greek Elegy. Oxford: Oxford University Press

segunda-feira, 21 de março de 2011

Cuidado com estranhos

[Compare o trecho abaixo, do "Hino homérico a Afrodite", com a passagem da súplica de Odisseu a Nausícaa em Odisseia 6:]

Eis que lançou-lhe no ânimo doce desejo por Anquises,
ele que então, nos cumes montanhosos do Ida muita-fonte,
pastoreava gado, de corpo semelhante a imortais.
Por isso, claro, ao vê-lo, Afrodite ama-sorriso
enamorou-se, e terrivelmente tomou seu juízo o desejo.

A Chipre tendo ido, no templo fragrante entrou
em Pafos; lá tinha santuário e altar fragrante.
Lá , após entrar, trancou as portas resplandescentes,
e lá as Cárites banharam-na e untaram com óleo
imortal, o que cobre os deuses sempre vivos,
imortal para bodas, que por ela foi perfumado.

Muito bem vestida no corpo com belas vestes,
com ouro adornada, Afrodite ama-sorriso
apressou-se rumo a Troia, após deixar a perfumada Chipre,
alto, em meio às nuvens, rápido efetuando o trajeto.
E alcançou o Ida muita-fonte, mãe de feras,
e foi logo à quinta através da montanha; estes atrás dela,
mexendo o rabo, lobos cinza, leões de olhar cobiçoso,
ursos, velozes leopardos, nunca saciados com gamos,
lançaram-se. Ela, vendo, no íntimo deleitou-se, no ânimo,
nos seus peitos lançou desejo, e eles todos juntos
em pares deitaram-se nas tocas umbrosas.

Ela própria à cabana bem construída chegou;
a este achou na quinta deixado sozinho, longe dos outros,
o herói Anquises, cuja beleza provinha dos deuses.
Os outros juntos seguiam o gado pelos pastos forraginosos,
todos, e ele, na quinta deixado sozinho, longe dos outros,
caminhava pra lá e pra cá, tocando lira penetrante.
E postou-se diante dele a filha de Zeus, Afrodite,
à virgem indomada semelhante em altura e aparência,
para que não temesse ao percebê-la com os olhos.

E Anquises, vendo-a, avaliou e pasmou-se
com aparência, altura e vestes lustrosas.
Pois vestia peplo mais brilhante que a luz do fogo,
usava braceletes recurvos e brincos brilhantes,
colares em volta do pescoço macio, magníficos, havia,
belos, dourados, bem ornados; como a lua
em volta do peito macio refulgia, assombro à visão.

E atração pegou Anquises, e diante dela falou-lhe:
"Salve, senhora, seja que ditosa fores e nessa casa chegas,
Ártemis, Leto, dourada Afrodite,
Têmis bem-nascida, Atena olhos-de-coruja,
ou, talvez uma Graça, aqui vieste – elas que dos deuses
todos são companheiras e imortais se denomina,
ou um ninfa, elas que belos bosques habitam,
ou uma das ninfas que esse belo monte ocupam,
fontes de rios e campos forrageiros.

Para ti eu no cimo, em local todo visível,
um altar edificarei e te farei belos sacrifícios
em cada estação apropriada; e tu, com ânimo bondoso,
dá que eu seja proeminente varão entre os troianos,
torne meu rebento vicejante no futuro, e a mim mesmo,
viver muito e bem, ver a luz do sol,
afortunado entre as gentes, e alcançar o umbral da velhice."

E a ele então respondia a filha de Zeus, Afrodite:
"Anquises, mais majestoso dos homens na terra nascidos,
não sou um deus – por que me comparas a imortais? –,
mas sou uma mortal, e mulher me gerou como mãe.
Otreu é meu pai, nome famoso, se acaso ouviste,
que toda a bem fortificada Frígia rege.
A vossa língua e a nossa conheço ao claro:
ama troiana me amamentou em casa e, todo o tempo,
criança miúda, criou, pois me levou de minha mãe –
assim, vê, também vossa língua conheço bem.

Agora raptou-me o matador-de-serpente bastão-dourado,
do coro de Ártemis roca-dourada, a barulhenta.
Muitas jovens esposas e virgens rende-gado
brincavam, e grupo infindo circundava-nos como coroa;
de lá raptou-me o matador-de-serpente bastão-dourado,
muitos campos dos homens mortais cobriu levando-me,
muita não dividida e não cultivada, onde feras
crudívoras zanzam pelas tocas umbrosas,
e pensava com os pés não tocar a terra brota-grão.

Disse-me que, junto ao leito de Anquises, seria chamada
lídima esposa e, para ti, filhos radiantes geraria
Mas depois que apontou e indicou, ele de volta,
rumo aos imortais, partiu, poderoso matador-de-serpente;
mas eu alcancei-te, e para mim é imperiosa a necessidade.
Pois me jogo a teus joelhos, por Zeus e teus genitores
nobres: vis não teriam alguém de tal jaez gerado;
indomada e inexperiente no amor, a mim leva
e mostra ao teu pai e mãe, versada em dedicação,
e aos teus irmãos, que nasceram do mesmo lugar:
para eles não serei nora ultrajante...

domingo, 20 de março de 2011

Os dois primeiros versos do canto 5 da Odisseia

Êôs d’ ek lekheôn par’ agauou Tithônoio
ornuth’, hin’ athanatoisi phoôs pheroi êde brotoisin

Aurora do leito saiu, de junto do ilustre Títono
ergueu-se, para luz a imortais levar, e a mortais;

A formulação "Aurora.../lançou-se..." (ou "...Aurora/lançou-se...") não é incomum na poesia épica, mas o restante da formulação sim. As diferenças com a bem mais comum "Quando a nasce-cedo surgiu, Aurora dedos-róseos" são muitas (na formulação mais comum, que ocupa um hexâmetro inteiro, a unidade sintática é idêntica à unidade poética, já que há um verbo presente). No caso da passagem do canto 5, o poeta repete e varia, o que é particularmente significativo para sua audiência.

Para Ahuvia Kahane, uma razão para evitar o verbo é emoldurar o verbo pelos nomes da deusa e do mortal, produzindo um lento ritmo espondaico (cada pé com duas longas) para expressar o nome do amante, acompanhado de um epíteto.

O verbo que inicia o verso 2 é um "runover word", palavra em enjambement (cavalgamento) com o verso precedente e seguido imediatamente por uma pausa.

A discussão sobre os aspectos técnicos e literários do uso do enjambement na poesia homérica é complexa e extensa. Um dos seus problemas é a tentativa de achar para ele um único efeito geral (Kahane 1994: 36, n. 46). A noção de ênfase, por exemplo, é muito estreita.

Parry define enjambement não periódico (Parry 1971: 253) como aquele onde o fim do verso coincide com uma pausa de sentido mas não com o fim de uma sentença:

"Zeus pai e outros ditosos deuses sempre vivos,
nunca mais alguém seja solícito, suave e amigável
como rei porta-cetro, nem, no juízo, saiba o medido",

onde "como rei porta-cetro" está em enjambement.

Homero parece tentar evitar enjambement periódico (necessário) - é aquele no início do verso 2 -, no qual a sentença está incompleta no fim do hexâmetro e precisa ser concluída ns linha seguinte.

Voltando aos dois versos do canto 5, brotoisin ("a mortais") aparece regularmente nessa posição; somente aqui com athanatoisi ("a imortais"; termo também comum, mas não particularmente nesse posição, e mais frequentemente com theoisi). Ora, esses dois versos já introduzem o tema central do canto, a separação entre deuses e mortais e a (im)possibilidade de imortalização. Forma e contéudo se espelham.

KAHANE, Ahuvia (1994) The Interpretation of Order: A Study in the Poetics of Homeric Repetition. Oxford: Oxford University Press
PARRY, M. (1971) The Making of Homeric Verse: The Collected Papers of Milman Parry. (org. A. Parry). Oxford: Oxford University Press

Os deuses na épica homérica

[Abaixo, um resumo sobre a figuração dos deuses na poesia épica, exemplificada por passagens do canto 5 da Odisseia – que sempre estarão entre colchetes, identificadas pelos números dos versos. Para o resumo, utilizei sobretudo alguns capítulos dos livros do J. Redfield e da da Jenny Clay citado no final]

O que torna os deuses diferentes das personagens? De que a forma as palavras e atos dos deuses se relacionam com a história? O que eles indicam em termos de crenças e ritos? Em especial, como podemos conjugar aquilo que nos parece a imoralidade dos deuses (e assim também já parecerá para alguns gregos do séc. VI) com uma visão religiosa?

É comum explicar os deuses não explicando nada, ou seja, afirmando que não se trata de religião. Seria um sistema totalmente antropomórfico. Esss intérpretes preferem tratar de conceitos abstratos – moira, aisa, themis,... – ao invés dos olímpicos (por exemplo, não está destinado que Odisseu morra no naufrágio causado pelo temporal de Poseidon).]

De um lado, são deuses universais que protegem alguma ordem moral e cósmica; de outro, divindades amorais que querem apenas satisfazer seus apetites muito humanos. Para outros, aparato divino é mero ornamento, ou então um recurso narrativo que faz avançar a história ou confere proeminência aos heróis; muitas das passagens centradas em deuses funcionariam como interlúdios cômicos.

O narrador também faz os deuses participarem para expressar uma decisão do herói: o poeta não conheceria outro meio. Isso pode até representar uma origem remota dos deuses, mas não explica o que eles fazem nos poemas. É comum um deus aparecer para um mortal – como Atena no sonho de Telêmaco em 15 – com informações que não podem pertencer ao mortal.

A narração flui mesclando ações divinas e humanas, tranquila e uniformemente; ou seja, em primeiro lugar, os deuses são personagens.

Seus epítetos, porém, indicam que se diferenciam, em bloco, dos mortais: imortais; ditosos; habitam o Olimpo. Vivem uma vida prazerosa, de sublime frivolidade: em 8, o adultério entre Ares e Afrodite causa riso (mas não exclusivamente), elemento completamente ausente do adultério de Clitemnestra e da possibilidade em Ítaca. O cômico e o frívolo são consequências da imortalidade, essa qualidade radical que separa as esferas divina e mortal. O que mede o valor da existência humana é aquilo ao qual se atribui uma maior importância do que a própria vida, como a honra.

Os deuses não envelhecem. Os homens, ao contrário, são comparados, por exemplo, com a vegetação, que brota, floresce e fenece. Os deuses, ao contrário, comem néctar e ambrosia, sinais da sua capacidade de não envelhecer. [Cf. os alimentos distintos que Calipso oferece a Hermes e Odisseu; deus e herói sentam no mesmo lugar, diante da ninfa, mas a eles são servidas refeições distintas]

[161: o aiôn de Odisseu está esvaindo enquanto ele permanece junto de Calipso. É um fluido corporal que incorpora o vigor ativo do ser humano e que se esvai (152-60).]Os heróis podem ser mais amados que nós e mais odiados pelos deuses. Razões para o amor dos deuses: ligações familiares; afeição genuína; afinidades eletivas. Entretanto, o deus mais parecido com um herói, com quem ele tem maior afinidade, pode tornar-se seu inimigo. O deus que ama pode se tornar o deus que odeia.
[211ss.: o mesmo vale para a comparação entre Calipso e Penélope; a beleza da segunda não é permanente (além de ser inferior em grau).]

Moira
moira diz respeito ao conhecimento, que, em Homero, é relativo ao passado (área por excelência das Musas), ao presente (visão) e ao futuro (moira). No que diz respeito ao presente, não há, no universo divino, a onisciência generalizada, pelo menos não na prática. O que há é uma espécie de supervisão.
[282-84: Poseidon (que está no leste – Lídia) vê Odisseu (que está vindo do extremo-oeste). Poseidon não é onisciente: ele só sabe que Odisseu saiu da ilha de Calipso quando o vê.]

Quanto ao futuro, ele costuma parecer meio indeterminado, mesmo quando enunciado por uma divindade. O que é definido é a moira. O termo, na verdade, é razoavelmente prosaico ("porção, parte"). Em relação à vida humana, o termo adquire um sentido especial. A moira de um homem é o que lhe cabe entre o nascimento e a morte, ou seja, algo delimitado no tempo. Amiúde é sinônimo de morte.
[113-15: é a moira (aisa) de Odisseu retornar; idem 41 (Zeus para Hermes).]
Além da morte, outros eventos fundamentais na vida de um homem ou de um povo podem estar determinados; nem todos o são, porém.

Aisa e moira são virtualmente termos sinônimos; a única diferença parece ser a de que aisa é mais medido que dividido.

Os deuses conhecem a moira dos homens; mas conhecê-la não é ter poder para determiná-la ou mudá-la. [286-90-: a ira de Poseidon. Poseidon sabe que o destino de Odisseu é escapar junto aos feácios; mesmo assim, continuará a afligi-lo. Aquilo que para nós parece sadismo divino talvez tenha uma base ritual na qual há um embate entre um homem (herói) e um deus. Poseidon não pode mudar o destino de Odisseu. Isso não quer dizer que haja uma hierarquia moira – deuses.]

Há uma certa contiguidade ou confluência entre o destino de um humano e a vontade ou o plano de Zeus. [30: o firme desígnio, boulê, (de Zeus), qual seja, o retorno de Odisseu. 103: o noos (espírito, ideia) de Zeus, ao qual nenhum deus pode ultrapassar ou frustrar.]

A forma (phusis) dos deuses

Os deuses têm conhecimento da natureza e poder sobre ela, mas raramente intervêm nela.
Deuses são capazes de metamorfoses, mudanças de natureza, explícita na habilidade que possuem de se disfarçar. Proteu é emblemático. Mas os deuses geralmente aparecem na forma de um humano. Esse poder dos deuses não deve ser entendido como parte do aparato divino para conduzir a narração, mas como manifestação de seu conhecimento e domínio da natureza. Os deuses também podem modificar os humanos, como quando despejam kharis (graça; cf. Telêmaco no início do canto 2) sobre eles ou quando Atena metamorfoseia Odisseu em xiii. Os deuses mudam a forma, não a substância.
Em grande parte, a forma dos deuses nos poemas épicos é determinada pela iconografia, ou seja, a contrapartida visual das suas funções.

[44: a iconografia de Hermes (sandálias – para voar; vara – para conduzir os mortos, para adormecer). Esse último não será usado.]

As metamorfoses são mais complexas.
[53: Hermes semelhante a uma gaivota]
Para Bannert (1988), semelhança com a partida do Olimpo e, posteriormente, de Ítaca por parte de Atena. Para esse autor, a aparição de um deus ‘na forma’ de um pássaro é um elemento do poeta para encadear as cenas.]

Que tenha havido teriomorfismo na Grécia, disso não há dúvida. Para Dirlmeier, porém, o deus ou sua ação é semelhante a um pássaro em um determinado ponto, não tendo toda a sua forma. Funcionariam como símiles, ou seja, haveria um único ponto de contato (por ex., desaparecer rapidamente como o pássaro que alça vôo e logo não se encontra mais no campo de visão de quem o observa). Para outros autores há metamorfose. Para Bannert (1988: 56ss.), através dela verifica-se a presença do numinoso. Para Buxton (2004: 143), por fim, às vezes há metamorfose, outras, comparação, outras, indeterminação. Como um dos atributos das divindades gregas é o mistério, por que não fazer uso dele desse modo?

A ira e o ódio dos deuses
Cf. Zeus na Ilíada 1, 414-15: "Não me provoque, mulher, para que eu, encolerizada não te abandone, de sorte que te odiarei tanto quanto agora te amo."

[108: a versão do retorno de Odisseu feita por Hermes: aqueus ofenderam Atena; todos morreram e Odisseu chegou a Ogígia. Curiosamente não é a versão da Odisséia o que Hermes apresenta.
116ss.: Calipso apresenta a sua versão para os motivos dos deuses: ciúmes. Também apresenta a sua versão da história, a ‘correta’, a versão da Odisséia: Zeus destruiu a nau e Calipso salvou Odisseu.
146: Calipso deve evitar a mênis (cólera) de Zeus
284ss.: a ira de Poseidon. Poseidon sabe que o destino de Odisseu é escapar junto aos feácios; mesmo assim, continuará a afligi-lo.]

Os deuses como personificação do pensamento humano
Após Poseidon instigar grande onda, ele interrompe sua participação; Atena auxilia Odisseu (por meio de idéias).

BANNERT, Herbert (1988) Formen des Wiederholens bei Homer: Beispiele für eine Poetik des Epos. Wien: Österreichischen Akademie der Wissenschaften
BUXTON, R. (2004) "Similes and other likenesses". In: FOWLER, Robert (2004) The Cambridge Companion to Homer. Cambridge: Cambridge University Press
CLAY, J. S. (1997) The Wrath of Athena: Gods and Men in the Odyssey. Lanham, Boulder: Rowman & Littlefield. (1ª ed.: 1983)
DIRLMEIER, F. (1967) Die Vogelgestalt homerischer Götter. Heidelberg
REDFIELD, J. M. (1994) Nature and Culture in the Iliad: The Tragedy of Hector. 2ª ed. Durham, London. (1ª ed.: 1975)

Poesia oral: estrutura em paralelo

A estrutura em paralelo é típica numa composição em forma de catálogo. Confira o trecho abaixo no canto 5 da Odisseia:

Sois terríveis, deuses, ciumentos mais que todos,
vós com deusas vos irritais quando com varões se deitam
abertamente ou se uma faz do amado seu marido.
Assim quando Órion foi eleito por Aurora dedos-róseos,    A B
e com ela irritaram-se os deuses de vida tranqüila                C
até que a ele, em Ortígia, trono-dourado, Ártemis sacra,     D E
com suas flechas suaves, após chegar, matou.                     F

E assim quando a Jasão a belos-cachos Deméter,               A’ B’
cedendo ao coração, uniu-se em enlace amoroso                C’
sobre campo trilavrado; pouco tempo ignorou-o                 D’ E’
Zeus, que o matou ao lançar um raio cintilante.                    F’
Assim irritai-vos comigo, deuses, por estar junto a um mortal.

O pequeno catálogo é demarcado por um alguns versos que o emolduram em estrutura anelar (os termos que se repetem em ordem inversa estão sublinhados), deixando bem claro para o ouvinte que o poeta passará, na sequência, para uma nova unidade.

A: nome do herói masculino por quem a deusa se apaixona;
B: nome da deusa
C: ação que a deusa executa ou sofre
D: onde uma ação ocorre (sedução; morte)
E: deus vingador
F: como a morte ocorre

Composição anelar (Ringkomposition)

A composição anelar é um recurso extensiva e intensivamente usado na poesia e prosa grega, e não somente no período arcaico. Trata-se de uma repetição temática ou vocabular em ordem inversa, ao longo de um certo número de versos, com um centro que funciona como ponto de inflexão. Essa ponto de inflexão pode manifestar-se não só no nível da forma, mas também de conteúdo. Abaixo, por exemplo, a inflexão marca o momento da viagem, da troca de região por parte dos feácios. A nova terra dos feácios funciona como um espelho da antiga na forma e no conteúdo.

Assim ele lá dormia, o muita-tenência, divino Odisseu,     A
por sono e fadiga dominado; mas Atena                          B
foi até o povo, o demo dos varões feácios;
eles, antes, moravam em Terra-ao-Longe amplas-pistas, C
próximo aos Ciclopes, varões presunçosos,                    D (desprotegidos)
que os pilhavam, pois na força eram superiores.
De lá fê-los erguer-se Rápido-no-barco, parecido a um deus,

e assentou-os em Esquéria, longe dos homens come-grão;
em volta puxou um muro para a cidade, construiu casas,     D’ (protegidos)
fez templos de deuses e dividiu as glebas.
Mas ele, já subjugado por sua sina, ao Hades partira,         C'
e Alcínoo liderava, versado em projetos oriundos de deuses.
Para a casa dele foi a deusa, Atena olhos-de-coruja,           B’
o retorno do enérgico Odisseu tramando.                            A’

Fórmula na poesia oral

No século XX, o nome mais influente a defender a dicção oral dos poemas homéricos foi Milman Parry (‘The traditional epithet in Homer’; ‘Homeric formulae and Homeric metre’).

Primeira tese forte importante – já presente em precursores – é a vinculação dos poemas a uma tradição. Mas Parry insiste que se trata da herança de uma técnica de composição cujo elemento fundamental é a fórmula.

O metro (o hexâmetro datílico homérico) é a precondição teórica da fórmula. Parry notou que palavras e frases são recorrentes geralmente em posição fixa, nos mesmos cola (plural de colon, um determinado intervalo métrico). Ele deu destaque ao exame de epítetos e seus substantivos, por exemplo, "senhor dos homens Agamêmnon" (semanticamente, =Agamêmnon); "Aquiles de pés ligeiros" (=Aquiles). O poeta, ao optar por determinada fórmula, faria sua seleção por critérios de versificação, não de sentido.

Definição de fórmula de Parry: "um grupo de palavras empregadas regularmente sob as mesmas condições métricas para expressar uma ideia essencial dada". As fórmulas são sintagmas criados para facilitar a tarefa do poeta que compõe em hexâmetros. Elas ocorrem por fazer parte da tradição; elas são a tradição.

Ideia essencial: aquilo que permanece depois que se retirou da expressão tudo que foi utilizado apenas por conta do estilo. Por exemplo: Atena, em "Atena, a deusa de olhos de coruja/glaucos" ou "Atena de olhos glaucos".

Princípio de economia: para uma ideia dada dentro de um determinado espaço no verso, tenderá a haver uma e somente uma fórmula no vasto arcabouço de fórmulas. A economia de um sistema depende de um número baixo de frases intercambiáveis. [para dizer x no espaço métrico y o poeta somente dispõe da fórmula z].

Parry propõe que o modelo de composição de Homero seria o de fórmulas sendo postas em determinados padrões de frases: fórmula tornou-se qualquer tipo de agrupamento de palavras repetido. Quando Parry e seus seguidores não demonstravam que determinada expressão era uma fórmula, presumiam-no. Esse modelo implicava que muito pouco do que os versos continham não seria dicção formular (total formularidade).

Para esse tipo de composição, a memória não é a única habilidade requerida – nem a principal. Para Albert B. Lord, discípulo de Parry (que morreu precocemente) a memória era menos importante que a recriação durante a performance. Além disso, os estudos em outras sociedades mostram não haver uma necessidade cultural para grande acuidade na reprodução (como na transmissão de textos religiosos).

A poesia oral não é uma improvisação, a não ser que se dê um sentido específico a "improvisação", qual seja, o sentido que tem no jazz (blocos pré-existentes de material são habilmente juntados ou modificados em novas formas). O melhor poeta é melhor improvisador onde a tradição não lhe oferece blocos muitos estáveis. Improvisação não é criação ex-nihilo: o poeta deve conhecer a tradição para poder improvisar.

Para Parry, as fórmulas, mais do que facilitar a memorização, facilitam a improvisação (como definida acima); elas possibilitam um intervalo maior ou menor de tempo para o poeta pensar ou até mesmo "descansar".

Um dos que aperfeiçoaram o modelo de Parry-Lord foi Gregory Nagy (por ex., em "Formula and meter", em Greek Mythology and Poetics), onde sublinha a conexão do epíteto com um tema particular e a importância da sua localização métrica. O regulador primeiro do epíteto homérico e da fórmula é o tema tradicional, mais do que o metro. Portanto, o epíteto nunca é contextualmente inapropriado.

Podas ôkus Akhilleus (Aquiles de pés ligeiros):

1. Sempre é contextualmente apropriado na Ilíada, pois caracteriza Aquiles como guerreiro;mais apropriado – tem uma motivação contextual mais precisa – no cto. XXII, quando Aquiles persegue Heitor;

2. igualmente no cto I, na querela: Agamêmnon é evocado como anax andrôn (senhor de homens), portanto, como chefe político, não como um guerreiro; a partir do contraste dos epítetos, percebemos que Agamêmnon tem o poder para privar Aquiles de seu presente e, assim, desonrá-lo.

3. Ilíada 1, 417: Tétis chama Aquiles de ôkumoros, "com rápido destino" (ele corre rapidamente rumo a sua morte).

quinta-feira, 17 de março de 2011

Dialetos (literários)

Não existe "grego antigo" como uma língua padrão antes da koinê; antes dela, nenhum falante considera que seu dialeto é mais ou menos "grego", mais ou menos "correto" que outro. Pensamos, porém, que os dialetos eram mutuamente compreensíveis. Além disso, todos os gregos concordavam que falavam "grego".

Jônico, eólico e dórico: teoria antiga das 3 raças. Cada um deles (e os outros) divididos em sub-grupos. Os dialetos literários nunca correspondem totalmente a um dialeto local. Admitem variações de outros dialetos ou de dialeto algum. Melhor seria chamá-los ‘linguagens literárias’.

A lírica monódica (com exceção de Safo e Alceu) é basicamente jônica. O jônico tem forte semelhança com o ático; mudança do â para o ê. É o dialeto da elegia, jambo, epigrama.

Dois bons textos introdutórios (Tribulato; Silk) no volume organizado por Egbert J. Bakker (2010) A Companion to the Ancient Greek Language. Wiley-Blackwell: Malden-Oxford. Sobre os dialetos de forma geral, cf. Geoffrey Horrocks (2010) Greek: A history of the language and its speakers. 2. ed. Oxford: Oxford University Press.

O ciclope Polifemo e Odisseu: ou, cuidado com as intempéries

Haikai de David Bader:

          Aegean forecast -
storms, chance of one-eyed giants,
          delayed expected.

Cf. p. 90 em HALL, Edith (2008) The return of Ulysses: A cultural history of Homer‘s Odyssey. Baltimore: Johns Hopkins University Press

quarta-feira, 16 de março de 2011

Simônides: tradução de epigramas e da elegia de Plateia

Robert de Brose publicou suas traduções de Simônides (epigramas bélicos e os fragmentos da elegia de Plateia) no vol. 2 da Revista literária em tradução.

Essa 2ª edição da revista já está sendo disponibilizada no site da revista

O link para o pdf do número em questão é:

. Para fazer o download da revista é preciso clicar no ícone pdf abaixo do sumário que consta no site da revista.

domingo, 13 de março de 2011

Justiça entre animais: uma “fábula” em Hesíodo

A passagem abaixo, de Hesíodo (Trabalhos e dias), talvez fosse conhecida do público do poema de Arquíloco que continha a história da águia e da raposa. De qualquer forma, as formulações de ambas as histórias são ligadas a determinadas concepções de justiça.

Para essa interpretação intertextual, cf. o excelente artigo de Elizabeth Irwin que já citei em outro post [http://poesiagrega.blogspot.com/2011/02/etica-e-estetica-da-vinganca-arquiloco.html].

A moral da fábula hesiódica, que precisa ser compreendida a partir da passagem do poema em que é inserida, não é clara; deve dizer respeito a Hesíodo, seu irmão Perses e os reis.

Agora história aos reis contarei, eles mesmos, atentos;
assim dirigiu-se o falcão ao rouxinol pescoço-variegado
que, muito no alto, entre nuvens, levava, dominando.
Aquele, tristemente, transpassado por garras recurvas,
chorava, e este, sobranceiro, a ele o discurso falou:
"Insano, por que guinchas? Tem-te um muito melhor;
irás para onde eu te levar, embora sendo um cantor;
refeição, se quiser, te tornarei, ou te libertarei.
Insensato o que quer a mais fortes contrapor-se;
privado da vitória, além da vergonha, sofre aflições."
Assim falou o falcão voa-ligeiro, ave asa-comprida.
Ó Perses, tu escuta a justiça e não aumenta a desmedida:
a desmedida é nociva para o mortal miserável...
(...)
Essa norma para os homens o Cronida atribuiu,
para os peixes, feras e aves aladas
comer-se mutuamente, pois justiça não há entre eles;
para os homens deu a justiça, ela que a melhor coisa
se mostra ...

Paula da Cunha Corrêa, em Um bestiário arcaico, também explora algumas relações entre as duas fábulas ao discutir os fragmentos de Arquíloco.

A primeira mulher: a criação de Pandora em "Trabalhos e dias"

Passagem de Trabalhos e dias, de Hesíodo, a ser comparado com o jambo de Semônides que apresenta distintas raças femininas oriundas de certos animais:

Com raiva, a ele dirigiu-se Zeus junta-nuvens:
"Iapetionida, superas a todos no conhecer ideias,
regozijas após o fogo roubar e meu juízo iludir,
para ti mesmo e varões vindouros, grande desgraça.
Eu, a eles, em troca do fogo, darei um mal com que todos
se deleitarão no ânimo, seu mal abraçando."
Assim falou, e gargalhou o pai de varões e deuses.
A Hefesto ordenou, ao mui glorioso, bem rápido
terra molhar com água, inserir voz humana
e força e à visão de uma deusa imortal assemelhá-la,
bela aparência amável de uma virgem; e a Atena,
ensinar as tarefas, tecer a trama mui artificiosa;
e à dourada Afrodite, graça verter em volta da cabeça,
anseio aflitivo e preocupações devora-membro;
inserir um espírito canino e um modo finório
a Hermes impôs, o condutor matador-da-serpente.
Assim falou, e eles obedeceram a Zeus, senhor Cronida.
De pronto a partir da terra moldou o glorioso duas-curvas,
tal qual respeitável virgem devido aos planos de Zeus;
cinturou e adornou-a a deusa, Atena olhos-de-coruja;
em volta dela, as deusas Graças e a senhora Persuasão
corrente dourada puseram na pele; coroaram-na
as Estações bela-coma com flores primaveris;
todo o adorno ao seu corpo ajustou Palas Atena.
Em seu peito, o condutor matador-da-serpente
mentiras, histórias solertes e um modo finório
arranjou por conta do plano do ribombante Zeus; som
colocou o arauto dos deuses, e nomeou essa mulher
Pandora, porque todos que têm casas olímpias
deram-na como um dom, desgraça dos varões come-grão.
Mas após o íngreme ardil intangível completarem,
a Epimeteu o pai enviou o glorioso Matador-da-serpente
levando o dom, o veloz mensageiro dos deuses. Epimeteu
não refletiu no que lhe dissera Prometeu, nunca um dom
aceitar de Zeus Olímpio, mas enviar de volta
no futuro para não se tornar um mal aos mortais;
ele, após receber, quando já tinha o mal, percebeu.
De fato, antes vivia sobre a terra a tribo de homens
à parte sem males e sem o duro labor
e doenças aflitivas, as que perdição dão aos varões.
[Rápido, na desgraça, os mortais envelhecem.]
Mas a mulher com as mãos a grande tampa do cântaro tirou
e espalhou, e para os homens armou agruras funestas.
Somente lá mesmo Esperança, na casa inquebrável,
ficou, dentro do cântaro sob as bordas, e não pela porta
afora voou, pois antes deixou tombar a tampa da jarra
por conta do plano do porta-égide, Zeus junta-nuvens.
Outras mil coisas funestas entre os homens vagam,
pois plena a terra está de males, pleno, o mar:
doenças para os homens há de dia, outras, de noite,
espontâneas, zanzam, males aos homens levando
em silêncio, pois o som tirou o astuto Zeus.
Assim, não há como escapar da ideia de Zeus.

Sinopse descritiva das convenções de hospitalidade na poesia homérica

Cf. Steve REECE (1993) The Stranger’s Welcome: Oral Theory and the Aesthetics of the Homeric Hospitality Scene, Ann Arbor, p. 6-7.

I. Menina na fonte; menino no caminho
II. Chegada no destino

III. Descrição das cercanias
a. Da residência: a descrição da morada de Odisseu se dá somente no seu retorno (xvii).
b. Da pessoa que se busca e/ou de suas atividades: Telêmaco está pensando no pai. Portanto, Telêmaco+Odisseu x pretendentes desde o início do poema
c. Dos outros e/ou de suas atividades. Aqui está a ênfase em i. Os pretendentes, ao longo da Odisséia, estão sempre comendo ou jogando. Está implícita a condenação dos pretendentes por não se darem conta da presença de um estranho no umbral, ou seja, eles se comportam e não comportam como anfitriões.

IV. Cão na porta
V. Espera no pórtico ou umbral: em ix, Odisseu e seus companheiros não esperam por Polifemo no umbral.
VI. Súplica: indica a situação difícil de quem chega.

VII. Recepção

a. Anfitrião percebe o visitante: convenção homérica de que o mais novo filho do senhor percebe um visitante (Reece 48). Reece 18 assinala que na cabana de Eumeu são os cães que primeiro vêem Odisseu; isso prefigura o perigo de Odisseu no seu palácio, onde chamará os pretendentes de cães (xxii).
b. Anfitrião hesita na oferta de hospitalidade: xeinos é um termo ambivalente, já que pode significar desde aquele que devemos tratar como philos até um estranho perigoso.

c. Anfitrião levanta do seu assento
d. Anfitrião aproxima-se do visitante
e. Anfitrião cuida dos cavalos do visitante
f. Anfitrião leva o visitante pelas mãos
g. Anfitrião saúda o visitante

h. Anfitrião toma a lança do visitante: esse gesto não é muito comum em Homero, mas ele pode se referir a um costume histórico [você desarma um inimigo potencial; Reece 20]. Gesto bastante significativo em i.
i. Anfitrião leva o visitante para dentro: sinaliza um certo tipo de contrato, ou seja, aquele que chega será bem tratado enquanto lá estiver. Compare as chegadas de Odisseu e Telêmaco na cabana de Eumeu: somente o primeiro é conduzido para dentro.

VIII. Assento: a qualidade de Telêmaco como anfitrião é sublinhada pelo fato de colocar uma poltrona para Atena e uma cadeira para si mesmo.

IX. Banquete
a. Preparação
b. Consumação: geralmente um verso formular.
c. Conclusão: também geralmente apenas um verso.

X. Bebida pós-jantar

XI. Identificação
a. Anfitrião questiona o visitante: um bom anfitrião interroga o visitante somente após a refeição; é vergonhoso romper essa tradição.
b. Visitante revela sua identidade: geralmente inicia dizendo que suas informações serão detalhadas e precisas. Muita variação entre as cenas. Um dos temas centrais da Odisséia é o reconhecimento. Telêmaco e Odisseu são às vezes reconhecidos pelos seus anfitriões.

XII. Troca de informações
XIII. Diversão
A diversão em i é irônica [como entre os feácios]: o canto trata da ira de Atena [que tinha sido um hóspede] e do retorno dos aqueus [ os pretendentes esperam que Odisseu nunca mais volte, mas ele voltará].

XIV. Visitante abençoa o anfitrião
XV. Visitante compartilha de um sacrifício ou libação
XVI. Visitante pede permissão para ir dormir
Com frequência o anfitrião é tão zeloso que o hóspede precisa lembrar que está na hora do sono.

XVII. Cama
XVIII. Banho
Geralmente dado por servas, mas também pela senhora da casa (Helena, Circe, Calipso) e uma vez pela princesa virgem (iii: filha de Nestor). Não costuma ser algo casual, portanto.

XIX. Anfitrião detém o visitante
XX. Presente para o visitante
XXI. Refeição de partida
XXII. Libação de partida
XXIII. Benção de despedida
XXIV. Augúrio na partida e interpretação
XV. Condução do visitante ao seu próximo destino

Duplicação: um elemento da técnica do bardo oral

Irene de Jong, baseando-se na análise de Bernard Fenik, assim define a duplicação ("doublet"): "uma cena que, em sua estrutura, repete outra cena".

Segundo Adrian Kelly, trata-se de um dos principais princípios poéticos da narrativa oral, ou seja, de uma composição que é feita durante a sua performance mesma.

A duplicação é um recurso particularmente efetivo numa narrativa mais longa, em especial, nos poemas monumentais que são a Ilíada e a Odisseia. Um exemplo odisseico:

Telêmaco, depois ter sido recebido por Menelau em Esparta (canto 4) e ainda sem ter revelado sua identidade, começa a chorar ao ouvir seu anfitrião falar de Odisseu. Ele tenta esconder de Menelau o choro, que pondera sobre o evento, mas sua identidade é imediatamente revelada quando Helena adentra o salão e, sem prestar atenção nas lágrimas, revela a identidade do hóspede.

Algo bastante parecido também ocorre a Odisseu quando na corte feácia (canto 8). Há vários elementos em comum entre o modo como Odisseu é recebido pelo rei Alcínoo e a recepção de Telêmaco em Esparta. Esses elementos, porém, podem ter feito parte de uma cena típica completamente independente de nossa Odisseia, a recepção de um hóspede seguindo regras de etiqueta.

O que não é comum nessas cenas, e que liga, de modo sugestivo para o leitor do poema como um todo, as recepções de Odisseu e Telêmaco, é que a identidade do hóspede não só se coloca como uma problema para o anfitrião, mas que esse problema é acentuado pelas lágrimas vertidas pelo hóspede no momento em que ele ouve uma história.

Dessa forma, numa duplicação, sentidos adicionais são construídos pelo leitor ao contrapôr as cenas em paralelo.

FENIK, Bernard (1974) Studies in the Odyssey. Hermes Einzelschriften v. 30. Wiesbaden: Franz Steiner

JONG, Irene J. F. de (2001) A narratological commentary on the Odyssey. Cambridge : Cambridge University Press

KELLY, Adrian (2008) "Performance and rivalry: Homer, Odysseus, and Hesiod" In: REVERMANN, Martin; WILSON, Peter (org.) Performance, iconography, reception: studies in honour of Oliver Taplin. Oxford: Oxford University Press

sábado, 12 de março de 2011

Lei de Jörgensen: a ignorância humana acerca de uma intervenção divina na poesia épica


O nome dessa "lei" deriva do nome do autor do artigo, de 1904, que a definiu: na poesia épica, o narrador tem a onisciência dada pela Musa, mas o mesmo não vale para suas personagens.

Essas, ao contrário dos deuses, ao se referirem a um evento, não podem saber se um deus está por trás dos acontecimentos nem de que deus se trata, a não ser que tenha sido informada por alguém que sabe (por ex., um adivinho) ou por um deus.

A personagem, porém, pode expressar que acredita tratar-se da intervenção de um deus; nesse caso, usa indistintamente e como sinônimos daimôn (divindade), theos (deus), theoi (deuses) e Zeus – ou então atribui a ação a um deus que por ela não foi responsável.

Uma exceção para essa regra são os casos em que há grande possibilidade de acerto por se tratar de um acontecimento que diz respeito a uma área de atuação específica de um deus: no canto 1 da Ilíada, Aquiles parece saber que Apolo é o responsável pela praga, não só pela ligação entre o deus e esse tipo de morte, mas também porque seu sacerdote foi desonrado. Nada disso, porém, é explicitado no texto.

Cf. Jim MARKS (2008) Zeus in the Odyssey. Hellenic Studies 31. Cambridge, Mass. – London: Center for Hellenic Studies, p. 41.

quarta-feira, 9 de março de 2011

"Efêmero" na poesia jâmbica

O espírito humano (noos) não é imutável, vale dizer, divino, mas determinado pelas circunstâncias, que, por sua vez, podem variar dia a dia.

Diz Arquíloco em fragmentos que talvez pertencessem a um mesmo poema e, eventualmente, vinham em sequência:

131 W
O ânimo dos homens mortais, Glauco, filho de Leptino,
torna-se tal qual Zeus o conduz durante um dia

132 W
e refletem de acordo com os eventos com que se deparam

Por isso, como diz Semônides, vivemos como o gado, somos "efêmeros", onde não se deve entender o adjetivo como se referindo ao tempo limitado e curto que dura a vida dos homens, mas em referência às condições que mudam dia a dia. No limite extremo, como se lê em Semônides, o homem não tem noos algum.

É assim que Fränkel entende o sentido do termo: "sujeito às vicissitudes do dia".

Semônides 1 West

Compare o poema do Semônides com a introdução da resposta que Odisseu dá ao pretendente "bonzinho" Anfínomo no canto 18 da Odisseia:

Eis que Antínoo pôs-lhe ao lado um grande estômago,
cheio de gordura e sangue; e Anfínomo
tirou dois pães da cesta e ao lado pôs;
com cálice dourado, cumprimentou-o e disse:
"Sê feliz, pai estrangeiro: tenhas, ainda que no futuro,
fortuna; agora, de fato, estás preso a muitos males."
Respondendo, disse Odisseu muita-astúcia:
"Anfínomo, realmente me pareces ser inteligente.
Tens um pai de tanto valor, pois ouvi a nobre fama,
que Niso de Dulíquion é bom e rico;
dele dizem que nasceste, semelhante a decente varão.
Por isso te direi, e tu compreende e me escuta:
nada mais débil a terra nutre que o homem
entre tudo que sobre a terra respira e circula.
Nunca alguém pensa que um mal sofrerá no futuro
enquanto sucesso deuses ofertam e os joelhos se mexem;
mas quando o funesto deuses venturosos completam,
também isso, a contragosto, suporta com ânimo resistente.
É tal a mente dos homens sobre-a-terra
como o dia que conduz o pai de varões e deuses.
Também eu, um dia, seria fortunado entre os varões,
e fiz muita coisa iníqua, cedendo à força e ao vigor,
confiante em meu pai e em meus irmãos.
Por isso jamais um varão ignore as regras,
mas, quieto, suporte os dons de deuses, o que derem.
Que iniquidades vejo os pretendentes maquinar:
as posses devastam e desonram a esposa
do varão que não mais, penso, dos seus e do solo pátrio,
longo tempo, longe ficará; está bem perto. Mas a ti um deus
para casa acompanhe; que não te depares com ele
quando retornar para sua terra pátria:
creio que, não sem sangue, se distinguirão
os pretendentes e ele, após entrar sob o seu teto."
Isso disse e, após libar, bebeu o vinho meloso,
e de volta pôs o cálice nas mãos do ordenador de tropa.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Ian Morris: A revolução do séc. 8 [CAG]

Defende que há poucos momentos na história mundial antes da revolução industrial que testemunharam uma mudança tão grande em 100 anos (800-700). O modelo de Snodgrass (1980: revolução estrutural) foi criticado nos anos 1990, mas, em linhas gerais, permanece: demografia, formação do estado, conflito social.
Pano de fundo: a Idade Obscura (Dark Age). A vida na Grécia nesse período (1100-750) foi mais miserável que em qualquer outra época na antiguidade.

Economia

Demografia: a população da Grécia (bacia do Egeu e colônias) provavelmente dobrou no séc. 8 (condições climáticas devem ter contribuído bastante entre 850 e 750). Como os problemas advindos disso foram solucionados?

Respostas: produção mais intensa nas terras agrícolas. Crescimento da irrigação e da arboricultura. Aumento na área usada para plantação.
Exemplo clássico de colonização ‘externa’ é Esparta, que conquistou a Lacônia (séc. 9) e a Messênia (provavelmente em 720) e transformou a população em helotas. Colonização: é possível que já em 700 trigo siciliano estivesse sendo exportado para o Egeu.

Padrão de vida: tamanho médio das casas entre 45-50 m2 (sécs. 8-7), crescendo nos sécs. seguintes. Banheiras reaparecem no séc. 7 após terem desaparecido no fim da Idade de Bronze.

Tendências econômicas gerais: produção mais intensa e extensa e reorganizada; elevadíssimo e contínuo aumento do consumo agregado e per capita.

Estruturas sociais

Formação do estado
Criação de comunidades de alguma forma mais organizadas e centralizadas. Não podemos ter certeza sobre a organização política referente a territórios maiores anterior ao séc. 8: possível presença de confederações, envolvendo vários chefes locais, com propósitos de defesa, religiosos e talvez comerciais.

Morris adota a definição de estado de Tilly 1992: "organizações controladoras da coerção distintas de grupos baseados na família ou no parentesco e que exercem uma prioridade clara em algumas esferas sobre todas as outras formas de organização no interior de territórios substanciais. O termo, portanto, inclui cidades-estado, impérios, teocracias e muitas outras formas de governo, mas exclui tribos, famílias e igrejas".

São muitos os desafios que as mudanças verificadas no período colocaram para os líderes, por ex., a definição das fronteiras sobre as quais seria responsável uma determinada organização política e a definição dos poderes locais em relação àqueles supralocais. Conflitos, claro, foram inevitáveis.
A guerra certamente deve ter sido o catalisador imediato: conselhos de basileis deveriam poder enfrentar vizinhos mais efetivos. A Ilíada e a Odisseia podem ser lidas como histórias que alertam para o custo de conflitos internos à elite.

As formas de organização política variam. Houve uma tendência geral de tornar os velhos basileis regionais chefes nominais ou oficiais anuais eleitos a partir de um colégio aristocrático. Esparta, com seus dois reis, era uma exceção.
As instituições do estado foram sempre fracas; o estado, pobre. Na guerra, por ex., cada indivíduo era responsável por suas armas; as fortificações eram simples; não existe armada antes de 550. De forma geral, o estado fazia pouco.

Igualitarismo
"A força do igualitarismo masculino e solidariedade comunal em face àqueles que poderiam tornar-se líderes foi a mais atípica e a mais importante característica da sociedade arcaica."

Um novo sistema ritual formou-se no Egeu central em torno de 1000: funerais notáveis dos ricos; adoração dos deuses, em grande parte, desloca-se para dentro da casa dos chefes. A expansão a partir de 900 desafiou esse sistema e, em 750, ele estava acabado. Novos rituais, mais abertos, competitivos e variados, floresceram: grandes cemitérios para toda a população; proliferação de santuários a céu aberto.

Aparentemente, só no Egeu, em todo o Mediterrâneo, as novas condições do séc. 8 não produziram reis fortes, mas colegiados oligárquicos. Em 650, todo aquele que se tornasse rei era um tyrannos, um usurpador ilegítimo. Morris explica esse trajeto rumo à cidade masculina, não à realeza, por meio de 4 fatores:

História: em 750, tradição de 250 anos de uma elite homogênea: barreira ideológica para a centralização do poder.
Economia: na Grécia arcaica não havia homens muito ricos; se houve, não deixou sinal de sua riqueza.
Guerra: a impressão é que Homero contou histórias de como grandes heróis deveriam agir em contraste com a realidade contemporânea de exércitos com infantarias em massa.
Religião: quase total ausência, no Egeu, de monarquias divinas e castas de sacerdotes. Separação entre poder secular e divino entre 750 e 700.

Com a fragmentação da aristocracia da Época Obscura no séc. 8, apelos aos pobres tornaram-se cada vez mais importantes. Para nenhum membro da elite se sobressair em relação aos outros, produziu-se o colapso da fronteira entre elite e não-elite. Com isso, criou-se uma nova versão de cidadão e de polis.

"Os conflitos do final do séc. 8 transformaram velhas noções sobre classe, gênero, etnicidade, passado, oriente e deuses em duas ideologias largamente opostas que eu chamei de ‘média’ (middling) e ‘elitista’ [um modelo bem mais simples que a realidade] "

O núcleo da idelogia média era de que todos os homens locais eram mais ou menos iguais, e todo o resto (mulheres, populações orientais, heróis...) eram completamente diferente. Os elitistas, ao contrário, defendiam sua diferença por meio de conexões divinas, orientais e heróicas. Os poetas médios eram ricos cantando para ricos, não protodemocratas.

Cultura

Historiadores da arte geralmente falam do séc. 8 tardio como um período orientalizante, mas o desenvolvimento mais significativo foi a reutilização de técnicas do Oriente Próximo como resposta aos problemas colocados pelos conflitos entre as ideologias média e elitista.

Alfabeto grego, desenvolvido em torno de 750. Morris defende que já em torno de 700 os poemas homéricos e hesiódicos teriam sido escritos, concordando com Powell que a principal razão para o desenvolvimento do alfabeto foi para fixar por escrito relatos sobre o passado, em uma época em que a relação entre passado e presente tornou-se agudamente importante.

As primeiras cenas humanas nos vasos que conhecemos talvez sejam heroicizantes (Snodgrass). Muito dos mitos gregos também podem ser localizado no Oriente Próximo.

domingo, 6 de março de 2011

Catherine Morgan: O início da Idade do Ferro (=iIF) [CAG]

Período entre 1200 e 700.

Após os palácios
Fase pós-palaciana (Heládico tardio IIIC) da vida urbana micênica tardia. Presença de uma elite super rica, cujos funerais os apresentam como líderes guerreiros. No iIF, há uma diluição do poder com a proliferação de basileis locais, cuja autoridade, porém, não nos é clara. "Geralmente, não sabemos se o status era herdado ou conquistado por meios econômicos, militares ou outros em um sistema de ‘grande homem’."

Sepultamento e sociedade
Mudanças nos hábitos: popularização do sepultamento individual e adoção da cremação em detrimento da inumação. Cremação permitia exibição e celebração prolongada junto ao túmulo, chamando a atenção para o morto e sua família.

Histórias de povoamento
Não se acredita mais que tenha havida uma enorme diminuição da população e que só a partir do séc. 8 começaram a se formar polis como unidades maiores.
Riqueza de Lefkandi atingiu um pico em 950, atestado por duas sepulturas monumentais (Toumba). Sugestões heroicizantes, homéricas.

Mobilidade, migração, comércio
Até pouco tempo, a interpretação de certos mitos serviu de base para enfatizar-se a migração como típica do período (sobretudo, a invasão dórica). Houve mudanças de nível de população em algumas áreas, mas foram em menor número, menos dramáticas e não típicas do período como se imaginou.
Os "demiourgoi" homéricos, viajantes, são difíceis de achar nos vestígios arqueológicos; mais comuns são as oficinas fixas. É certo, porém, que especialistas itinerantes operaram na Grécia no período.
Comércio diverge em escala e talvez em natureza da Idade de Bronze, mas a Grécia certamente não estava isolada. Havia trocas de presentes entre as elites; os comerciantes itinerários, porém, são mais difíceis de identificar. Ânforas para transporte de mercadorias.

Subsistência
Em boa parte da Grécia, provavelmente o mundo descrito por Hesíodo em Trabalhos. Aspectos seculares e sagrados das atividades econômicas estavam entrelaçados.

Santuários
Antes de 750, sítios ao ar livre, sem construções, na Grécia central e sul, o que não implica atividades temporalmente e espacialmente desorganizadas. As oferendas estavam presentes, em número crescente; grande diferença entre as dádivas de pobres e ricos. Imagens antropomórficas em grande escala só reaparecem no séc. 8.

Metalurgia, culto, armamentos
Aquisição da tecnologia de aproveitamento do ferro no Egeu através de Chipre, no séc. 11, após a queda do império hitita, que guardara o segredo. Usos principais: armas e oferendas votivas. Ferro é um metal mais complicado de trabalhar que o bronze e demanda mais tempo. Dificilmente era barato.
Durante a maior parte do período em questão, quase nenhuma armadura ou muito leve era exigida do guerreiro, somente um escudo leve, uma espada e um par de lanças ou arco e flecha. A partir do último quarto do séc. 8 a panóplia hoplítica começa lentamente a aparecer e a refinar-se (hoje em dia, praticamente não se fala mais de reforma hoplítica).

Expansão no séc. 8
Nesse momento, reconhece-se vários elementos típicos da IA: uma ampla cadeia de santuários e templos, cidades em expansão, escrita alfabética, povoamentos além mar. A época é amiúde vista como uma "renascença grega", termo que não é muito preciso. Uma elemento que tem modificado esse quadro é o exame do aumento populacional em centros rurais e urbanos.

Além mar grego
Povoamentos permanentes aumentaram dramaticamente com o início da colonização do oeste nas últimas décadas do séc. 8. O séc. 12 foi um período de intenso contato com a Itália, especialmente a Apúlia. Fundação de Pithekoussai por eubeus, o que consolidou o intercâmbio com uma rede bem estabelecida de fenícios, sardos e vários grupos italiotas. É nesse ambiente que os gregos devem ter aprendido a escrever sua língua usando uma versão adaptada do alfabeto fenício. Outros lugares para essa transferência ter ocorrido são Al Mina, Creta, Rodes, cidades continentais (Atenas) ou da Eubeia.
Ligações com o leste eram ainda mais ricas e complexas. Não se sabe se Al Mina tinha uma população grega sazonal ou permanente nem a partir de quando. Pouco provável que tenha sido fundada por gregos.

Vida na cidade
"Tanto no caso da expansão do povoamento envolver uma mudança escalar na intensidade quando na simples extensão através de uma área maior, o resultado foi uma necessidade sem precedentes de lidar com exigências de moradias próximas."
"Oráculos foram um meio importante de ganhar a aprovação para estratégias novas e litigiosas." Uso da escrita: publicação de leis; demarcação de propriedades; identificação de oferendas votivas.
Arquitetura pública e planejamento, especialmente das primeiras ágoras. Criação de novos santuários.

Elites no séc. 8
Na maior parte da Grécia, o gasto com funerais cresceu marcadamente a partir de 750. Não se acha muita evidência física para o espaço das famílias da elite no seio das comunidades em expansão. É na esfera religiosa que o poder era exercido.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Jambo: Martin L. West

Nesse post, um resumo parcial do texto de Martin L. West (deixei de lado, por ex., a discussão sobre Hipônax e os exemplos desse poeta) sobre o jambo que está em seu livro Sudies in Greek Elegy and Iambus (Berlin: de Gruyter, 1974), p. 22-39. Meu resumo beneficia-se de uma tradução do texto que fiz com Fernando Rodrigues, mas que continua inédita.

O termo grego íambos não implica necessariamente um metro ou tipo métrico; o metro jâmbico obteve seu nome por ser particularmente característico dos íamboi e não o contrário.

A invectiva era vista como a marca mais evidente do gênero. Há uma grande variedade de assuntos nos fragmentos que os antigos, em algum momento, denominaram jambos. Para Dover, a característica comum dos jambos pode ter sido o tipo de ocasião para o qual eles foram compostos. A etimologia de íambos é desconhecida, mas tem sido comparada com dithúrambos, thríambos e íthumbos. Todas essas três palavras são associadas ao culto de Dioniso.

Iambe, personagem mítica: aparece no Hino a Deméter, 202, como a mulher que animou Deméter com gracejos abusivos depois de um período de tristeza e abstinência. Não há dúvida que as khleuai ("gracejos") de Iambe são protótipos míticos de alguma espécie de zombaria ritual de um tipo provavelmente cômico, insultante e indecente, de onde deve ter nascido o nome íamboi.

Deméter e Dioniso naturalmente tendem e ser associados, na religião grega, como divindades que controlam a produção da terra. Ambos possuem conexão com Paros e com Arquíloco.

A palavra íambos aparece pela primeira vez em Arquíloco fr. 215: "e não me preocupo nem com jambos nem com diversões", o que indica que, mais que poemas, trata-se de ocasiões.

West sugere que se pode reconhecer o jambo de forma mais confiante nos tipos de assunto dos quais os elegíacos nunca tratariam, isto é, poemas com sexualidade explícita, com invectivas que vão além do gracejo engenhoso encontrado na elegia e com outros tipos de vulgaridade. Em Arquíloco, concentrados nos trímetros jâmbicos e nos epodos.

Destaque para os ataques a Licambes e suas filhas. West sugere que Licambes e suas libidinosas filhas não foram contemporâneos de Arquíloco, mas personagens típicos de um entretenimento tradicional com alguma (talvez esquecida) base ritual. West sugere, como uma espécie de base sociológica da prática, o insulto contra os aristocratas poderosos.

Se Licambes e suas filhas não foram pessoas reais, então Arquíloco estava encenando um papel. Talvez fosse parte desse mesmo papel que ele se apresentasse como um bastardo, filho de uma escrava chamada Enipo (fr. 295); o nome, com suas conexões de enipaí (censuras), é suspeitamente apto para a mãe de um poeta jâmbico.

Há muitas referências nos fragmentos jâmbicos à comida e aos gêneros alimentícios.

Não gosto de um líder grande, pernas afastadas,
orgulhoso dos cachos, bigode aparado.
Não, meu seria pequeno e, quanto às pernas, torto
de se ver, firme marchador nos pés, pleno de coração.
(Arquíloco 114 W)

A sátira a figuras públicas presente nesse fragmento pode indicar que ele tenha sido considerada um jambo, mas que tenha sido uma elegia não é algo que se possa descartar. O o fato de o fragmento estar em tetrâmetros talvez indique que poderia estar agrupado com os comentários mais sérios sobre eventos públicos frequentes na poesia de Arquíloco nesse metro e que presumivelmente não é jâmbica.
Comentários políticos sérios em jambos são encontrados em Sólon.

Outro tipo de poema encontrado entre os antigos poetas jâmbicos pode ser chamado filosófico, por ex., Simônides 1 e 7. O primeiro tem uma temática que pode ser encontrada em uma elegia. O outro tem uma possibilidade um pouco maior de ser um jambo genuíno.

Algumas observações gerais sobre o jambo jônico: monólogo poético ou monódia de estrutura simples. Podem aparecer conversas, mas algumas vezes é evidente que elas são relatadas por um narrador. Metros característicos: trímetros jâmbicos e tetrâmetros trocaicos, puros ou coliâmbicos, ou combinações epódicas. A persona loquens (o eu poético) se dirige algumas vezes para o próprio público, algumas vezes a alguém específico, um amigo ou o sujeito de zombaria ou vilipêndio. Denuncia-se ou se ridiculariza pessoas particulares ou tipos universais, de um modo que divirta e entretenha, ou se conta excitantes aventuras sexuais ou outras coisas baixas. O cantor de um epodo poderia ser acompanhado por um instrumento musical.

O gênero atingiu seu auge no sétimo e no sexto séculos. [Daqui até o final de seu texto, West explora as conexões entre o jambo e a comédia ática.]