segunda-feira, 14 de maio de 2012

“Introducing Greek lyric”, The Cambridge Companion to Greek Lyric, Felix Budelmann (Cambridge, 2009)

A lírica grega e seus desafios

O sentido e a história de “lírico”

·         sentido estrito (mélico): o termo exclui os gêneros jambo e a elegia;
·         sentido amplo: inclui-os.

Lyrikos refere-se à lira e só aparece no séc. II a.C. (literatura helenística: discussão, categorização e catalogação) em referência a uma categoria específica de poesia/poetas. A lira é referida com frequência nos poemas.
Antes disso, o termo mais importante era melos (“canção, tom”), usado por muitos poetas em referência às suas composições; às vezes é oposto à poesia épica e à tragédia (Platão). O adj. melikós aparece no séc. I a.C. Lyrikos é associado particularmente aos 9 poetas arcaicos canonizados [cf. Ragusa 2010]. Mas de forma geral, termos usados indistintamente.
*Tanto na antiguidade latina quanto grega, “mélico” e “lírico” somente eram usados em um sentido estrito. Poesia elegíaca podia ser referida pelo mesmo termo que a épica, epê.
O sentido restrito continuou na Renascença, mas isso gradualmente muda e o amplo aparece no início do séc. XVIII e é consagrado por Goethe e suas “formas naturais de poesia”. Lírica como modo afetivo-expressivo.

[Para alguns autores, por ex. Silk 377-78 no mesmo Companion, a tripartição (3 modos de representação) já está presente em Platão:

·         imitação de pessoas: drama;

·         o poeta fala em seu próprio nome: ditirambo (significando lírica, como na Poética);

·         combinação dos dois modes: épica.]

Período: arcaico e início do clássico, ou seja, o período dos poeta do cânone, e não de todas as épocas em que foram compostos.
‘Lírica’ não é um termo evidente em si; trabalhos em vários períodos e literaturas indicam tratar-se de um termo impossível de ser definido. O modo ‘lírico’ é impossível de ser definido do modo como foram o dramático e o narrativo.

 Um corpus variado e mal definido

 Os textos sob a rubrica “lírica” são muito variados entre si. Uma narrativa (com ou sem discurso em 1a pessoa) ou a perspectiva de uma 1a pessoa podem ser mais ou menos preponderantes.
*A variação se dá em quase todos os aspectos: assunto, propósito, tamanho, metro, dialeto, tom, geografia, período, número e tipo de performer(s), modo de performance, acompanhamento musical, público, lugar da apresentação (santuários, ruas, espaço de convivência, casas etc.).
Não é sempre óbvio o que não é lírica (por ex., os poemas pré-socráticos; parte coral da tragédia é lírica). Os Hinos homéricos têm muito em comum com hinos de compositores líricos; o mesmo vale para as semelhanças entre Trabalhos e dias e Teógnis.iHH

Exatamente por conta dessa variedade, muitos abandonam qualquer variação da noção moderna de “lírica” e adotam exclusivamente conceitos antigos: jambo-elegia-melos e subgêneros do melos.

Algumas características diferenciam, forma ampla e genérica, a poesia lírica da épica e dramática:

·         (bem) mais curtos que a poesia épica;

·         amiúde ancorados no presente, com um ‘eu’ e ‘nós’ forte;

·         seu contéudo é ‘não-mítico’;

·         não narram apenas, mas buscam a realização de algo: prece, exortação, ensino, flerte.

·         pode mencionar a própria performance (dançarinos, cantores, instrumentos)

·         amiúde de terem sido compostos para uma ocasião particular ou um tipo de ocasião.

 Um registro incompleto

 Não só nosso corpus é reduzido (mesmo em relação ao cânone composto pelos alexandrinos, ele próprio uma seleção) e, muitas vezes, não significativo, mas pouco sabemos sobre a evolução dos gêneros e as condições de composição e transmissão (escrita?) na época arcaica. É igualmente ingênuo supor uma grande fixidez e uma grande fluidez na época em que a escrita apenas estava em seu início (sécs. VII-VI), embora no final desse período talvez já fosse comum uma escrita posterior à primeira apresentação.

Somente edições alexandrinas dos epinícios de Píndaro e Teógnis chegaram até nós em suas versões manuscritas; o restante do corpus é conhecido por meio de papiros que têm sido lidos desde o séc. XIX  e por testemunhos indiretos em outras obras da antiguidade [infelizmente, raramente são poemas completos].

O que sobrou com frequência não é representativo (diferente da épica e da tragédia). Por exemplo: proêmios cantados com cítara; canções populares.
*É importante não esquecer que se perdeu a música que acompanhava os poemas, sobretudo a mélica e a elegia, e que, em grande parte, não conseguimos reconstruir o contexto de performance dos poemas, algo fundamental para sua compreensão.
Também pouco sabemos sobre a vida dos poetas. Por ex., Corina, uma das poucas mulheres além de Safo: helenística ou clássica? Alguns nomes referem-se a poetas anônimos compondo no contexto de uma tradição?
Por fim, pouco sabemos sobre a época arcaica, sendo que a principal fonte é a literária, o que leva a um alto grau de circularidade.

Estudos sobre lírica grega

Gêneros e categorias

 Já na antiguidade, buscou-se distinguir gêneros e subgêneros para se entender a forma e o propósito de um determinado grupo de cantos; grandes gêneros: ditirambo, epinício, peã, elegia, jambo. Muitos dos termos estão presentes nos próprios poemas, mas as primeiras tentativas teóricas de definição e classificação são bem posteriores.
Uma outra ferramenta para se distinguir os poemas em grandes grupos são as seguintes dicotomias, que têm suas limitações e devem ser usadas com cuidado, de preferência sendo pensadas como escalas, onde um poema particular, em uma ocasião particular, poderia estar mais perto de um que de outro:

Performance solo x coral (canto coral x monódia): muitas vezes, não sabemos mais como era a performance. Muitos poetas parecem ter escrito para os dois modos. O modo também poderia variar nas reperformances do canto.

Público x privado: desde grandes festivais organizados por uma polis até apresentações fechadas para um público pequeno. Aqui também a reperformance nos alerta a pensar até que ponto um poema teria sido composto estritamente para um ou outro tipo de público. Além disso, o sentido de privado para os gregos não tem o mesmo sentido que para nós. Um simpósio, por exemplo, o mais importante local de performance do lado privado da balança, era uma ocasião em que se poderia discutir importantes assuntos públicos. Casamentos e funerais, onde o canto também se fazia presente, tinham igualmente um caráter público forte.

Elite x não-elite: os cantos refletem a estratificação social e as tendências de mudança, ou seja, a mobilidade social, embora nunca simplesmente descrevam realidades sociais.

Cantado x falado: de forma bem geral, pode-se separar a lírica cantada (=mélica) da poesia falada (elegia, jambo e épica) [assim como, de forma bem geral, tragédias e comédias têm partes faladas por personagens e cantadas pelo coro]. O metro (bastante regular nos jambos e elegias; bastante diferenciado na mélica) confirma essa divisão e o fato de nunca os poetas elegíacos e jâmbicos usarem “melos” em referência aos seus poemas. A mélica era normalmente acompanhada de instrumentos de corda (lira) tocados pelos próprios cantores, enquanto as elegias (quase nada se sabe sobre o jambo) devem ter sido geralmente acompanhadas por um tocador de aulos (~oboé moderno). Tudo isso, porém, é bastante esquemático: a presença do aulos, por exemplo, mostra que a performance da elegia também era altamente musical. O próprio aulos parece ter sido usado também na mélica (e nas partes corais no teatro).

Reconstrução 1: textos

Trabalhar com poesia lírica é ser obrigado a enfrentar uma série de brechas, maiores ou melhores, e tentar preenchê-las: textos fragmentários, tamanho do poema, autor e gênero desconhecidos são os problemas centrais. Em grande parte, trabalha-se com textos reconstruídos. Para o trabalho de reconstrução, estudos de recepção na antiguidade são fundamentais (filologia alexandrina; autores que citam trechos líricos).

Reconstrução 2: contextos

Reconstruir o contexto dos poemas é igualmente difícil, tanto mais importante porque a maioria dos cantos foi composta para ocasiões específicas.
Para Bruno Snell (que continua ideias – românticas – do séc. xix, por ex., Schlegel), o contexto principal teria sido o da “descoberta do espírito” na Grécia antiga, evidenciado pela presença maciça do “eu” (ao contrário do que ocorreria na épica) [para uma apresentação e discussão crítica da teoria, além do texto de Ragusa , cf. a primeira parte do livro de Corrêa, Armas e varões]. Individualidade x destino traçado (épica).
Trabalhos mais recentes mostram, ao contrário, a intensa influência recíproca entre a épica  e a lírica (que já deve ter tido gêneros bem desenvolvidos bem antes dos primeiros poemas que conhecemos do séc. VII).
Outra importante objeção à teoria de Snell é que ela não leva em conta as condições de performance, na verdade, o coração dos estudos sobre a lírica pelo menos desde os anos 1980. A lírica grega passou a ser vista como parte do que se chama de “song culture” (cultura musical ou cultura do canto), uma cultura onde um canto concentra vários aspectos (sociais, religiosos, políticos, existenciais etc.) da vida [John Herington: song(-dance) culture; Bruno Gentili]. “Todo mundo canta, e o canto é um meio de expressar coisas que importam, além de ser um modo de entretenimento” (p. 15). O foco nos estudos de lírica deixou de ser o autor, e passou a ser o performer e o público; não mais uma lírica da individualidade e auto-expressão subjetiva, mas uma lírica que tem uma função nas vidas das comunidades arcaicas e clássicas: ritual; educação; propaganda; solução de conflito; criação de coerência social; comemoração; celebração. Em suma, muitas das funções da música popular (de certas épocas).

Lírica grega x latina/moderna

A noção de persona lírica é válida para muitas épocas: o ‘eu’ do poeta é algo impalpável. Diferentes gerações de críticos combateram o biografismo.

A cultura do “symposion”: Oswyn Murray [“Companion to archaic Greece”]


[Excelente e agradável texto pelo grande especialista no assunto.]

O “symposion” (=S), junto com o ginásio e o circuito de jogos em festivais internacionais, foi o foco da aristocracia na Grécia arcaica. Depois do trabalho seminal de J. Burckhardt, só no final dos anos 60, o S começou a ser mais estudado para se entender a relação entre os costumes ligados a um modo de beber e certos gêneros líricos. Igualmente importante foi o estudo iconográfico de vasos cujo uso principal, altamente sofisticado (humor, piadas visuais, trocadilhos), se dava no ambiente do S; aliás, poesia e arte visual precisam ser estudadas em conjunto, pois faziam parte de um todo no ambiente do S. Por fim, os arqueólogos identificaram um aposento especial para essas festas masculinas, o “andron”.

As funções da poesia grega envolviam instrução e divertimento. A elegia arcaica era o foco principal para discursos descritivos, normativos e exortativos (*militar). Agendas políticas diversas em Sólon, Teógnis e Alceu. De forma geral, a lírica coral está associada a festivais religiosos, a monódica, ao S.

Os vasos eram os seguintes: cratera (misturar vinho e água; dois tamanhos básicos: 7 e 14 litros); ânfora e hydra (continham a bebida); jarros diversos para servir; taças em diversas formas para beber. Algumas taças, muito grandes para beber, devem ter sido penduradas como decoração.

O “andron” variava de tamanho dependendo do número de sofás (7-11-15). Próximo da rua e longe dos aposentos das mulheres.

Regras básicas: reclinavam-se apoiados no cotovelo esquerdo, nunca mais de 2 por sofá (“kline”), olhando da esquerda para a direita ao longo das paredes. Um simposiarca ou basileus dirigia as atividades do S., sobretudo a medida da combinação água-vinho e o tipo de entretenimento. Mulheres respeitáveis nunca estavam presentes. Total separação entre a refeição (deipnon) e a ocasião de beber.

Origem: em Homero, há um tipo de banquete que parece exclusivo da aristocracia, dos líderes, ou seja, distinto da refeição ligada a práticas sacrifíciais. O S é uma continuação, mas com influência de práticas luxuosas orientais.

Rituais de consumo: o modo mais comum de diluição devia deixar o teor alcoólico semelhante àquele da cerveja; a qualidade da bebida não era alta. Vinho não diluído era deixado para deuses e heróis, considerado algo bárbaro (Filipe e Alexandre da Macedônia tomavam-no puro). Embora uma finalidade do S fosse autocontrole, há muitas histórias e representações de descontrole nos vasos. O mobiliário era a expressão máxima de luxo (almofadas; sofás ricamente adornados). “A arte mesma da conversação, especialmente sobre temas literários e filosóficos, encontra seu habitat e sua mais alta expressão no symposion” (p. 517).

Diversões: as composições poéticas no início do período arcaico eram feitas por membros integrais do S.; profissionalismo começa a aparecer a partir de 550, quando os poetas parecem usar a sua arte para participar das reuniões da elite em localidades distintas. Jogos que exigiam determinadas habilidades; danças executadas por profissionais; o penetra, que deveria, como uma espécie de bobo, entreter os hóspedes.

A intimidade entre os simposiastas levava à uma união fora dos ditames da polis e dos laços familiares.

Escravas participam como musicistas, dançarinas ou, mais comumente, como hetairas, cortesãs, não prostitutas (já se disse que o único esporte coletivo grego é o sexo), com frequência altamente treinadas. Práticas homoeróticas são comuns, especialmente aquelas envolvendo aspectos paidêuticos entre o erastês e o eromenos, ambos nobres, mas também mais ligeiras, para as quais o hóspede usava um menino escravo, que realizava suas funções no S nu. Não é por acaso, portanto, que as descrições literárias do S (o Banquete de Platão, por ex.) enfatizam o sexo e o desejo.

Komos: era uma espécie de procissão ritual de alcoolizados pela cidade, um modo do S ultrapassar as fronteiras do privado. Envolvia violência ritualizada contra passantes inocentes. O mais famoso episódio individual foi a mutilação de Hermai em Atenas em 415.