O sentido e a história de “lírico”
·
sentido
estrito (mélico): o termo exclui os gêneros jambo e a elegia;
·
sentido
amplo: inclui-os.
Lyrikos
refere-se à lira e só aparece no séc. II a.C. (literatura helenística:
discussão, categorização e catalogação) em referência a uma categoria
específica de poesia/poetas. A lira é referida com frequência nos poemas.
Antes disso, o termo mais importante
era melos (“canção, tom”), usado
por muitos poetas em referência às suas composições; às vezes é oposto à poesia épica
e à tragédia (Platão). O adj. melikós
aparece no séc. I a.C. Lyrikos é
associado particularmente aos 9 poetas arcaicos canonizados [cf. Ragusa 2010]. Mas de forma
geral, termos usados indistintamente. *Tanto na antiguidade latina quanto grega, “mélico” e “lírico” somente eram usados em um sentido estrito. Poesia elegíaca podia ser referida pelo mesmo termo que a épica, epê.
O sentido restrito continuou na Renascença, mas isso gradualmente muda e o amplo aparece no início do séc. XVIII e é consagrado por Goethe e suas “formas naturais de poesia”. Lírica como modo afetivo-expressivo.
[Para alguns autores, por ex. Silk
377-78 no mesmo Companion, a tripartição (3 modos de representação) já está presente em Platão:
·
imitação
de pessoas: drama;
·
o
poeta fala em seu próprio nome: ditirambo (significando lírica, como na
Poética);
·
combinação
dos dois modes: épica.]
Período: arcaico e início do
clássico, ou seja, o período dos poeta do cânone, e não de todas as épocas em
que foram compostos.
‘Lírica’ não é um termo evidente em
si; trabalhos em vários períodos e literaturas indicam tratar-se de um termo
impossível de ser definido. O modo
‘lírico’ é impossível de ser definido do modo como foram o dramático e o
narrativo.Não é sempre óbvio o que não é lírica (por ex., os poemas pré-socráticos; parte coral da tragédia é lírica). Os Hinos homéricos têm muito em comum com hinos de compositores líricos; o mesmo vale para as semelhanças entre Trabalhos e dias e Teógnis.
Exatamente por conta dessa variedade,
muitos abandonam qualquer variação da noção moderna de “lírica” e adotam exclusivamente
conceitos antigos: jambo-elegia-melos
e subgêneros do melos.
Algumas
características diferenciam, forma ampla e genérica, a poesia lírica da épica e
dramática:
·
(bem)
mais curtos que a poesia épica;
·
amiúde
ancorados no presente, com um ‘eu’ e ‘nós’ forte;
·
seu
contéudo é ‘não-mítico’;
·
não
narram apenas, mas buscam a realização de algo: prece, exortação, ensino,
flerte.
·
pode
mencionar a própria performance (dançarinos, cantores, instrumentos)
·
amiúde
de terem sido compostos para uma ocasião particular ou um tipo de ocasião.
Somente
edições alexandrinas dos epinícios de Píndaro e Teógnis chegaram até nós em
suas versões manuscritas; o restante do corpus é conhecido por meio de papiros
que têm sido lidos desde o séc. XIX e por testemunhos indiretos em outras obras da
antiguidade [infelizmente, raramente são poemas completos].
O que
sobrou com frequência não é representativo (diferente da épica e da tragédia).
Por exemplo: proêmios cantados com cítara; canções populares.
*É
importante não esquecer que se perdeu a música que acompanhava os poemas,
sobretudo a mélica e a elegia, e que, em grande parte, não conseguimos
reconstruir o contexto de performance dos poemas, algo fundamental para sua
compreensão. Também pouco sabemos sobre a vida dos poetas. Por ex., Corina, uma das poucas mulheres além de Safo: helenística ou clássica? Alguns nomes referem-se a poetas anônimos compondo no contexto de uma tradição?
Por fim, pouco sabemos sobre a época arcaica, sendo que a principal fonte é a literária, o que leva a um alto grau de circularidade.
Estudos sobre lírica grega
Gêneros e categorias
Performance solo x coral (canto coral
x monódia): muitas vezes, não sabemos mais como era a performance. Muitos
poetas parecem ter escrito para os dois modos. O modo também poderia variar nas
reperformances do canto.
Público x privado: desde grandes
festivais organizados por uma polis
até apresentações fechadas para um público pequeno. Aqui também a reperformance
nos alerta a pensar até que ponto um poema teria sido composto estritamente
para um ou outro tipo de público. Além disso, o sentido de privado para os
gregos não tem o mesmo sentido que para nós. Um simpósio, por exemplo, o mais
importante local de performance do lado privado da balança, era uma ocasião em
que se poderia discutir importantes assuntos públicos. Casamentos e funerais,
onde o canto também se fazia presente, tinham igualmente um caráter público
forte.
Elite x não-elite: os cantos refletem
a estratificação social e as tendências de mudança, ou seja, a mobilidade
social, embora nunca simplesmente descrevam realidades sociais.
Cantado x falado: de forma bem geral,
pode-se separar a lírica cantada (=mélica) da poesia falada (elegia, jambo e
épica) [assim como, de forma bem geral, tragédias e comédias têm partes faladas
por personagens e cantadas pelo coro]. O metro (bastante regular nos jambos e
elegias; bastante diferenciado na mélica) confirma essa divisão e o fato de
nunca os poetas elegíacos e jâmbicos usarem “melos” em referência aos seus
poemas. A mélica era normalmente acompanhada de instrumentos de corda (lira)
tocados pelos próprios cantores, enquanto as elegias (quase nada se sabe sobre
o jambo) devem ter sido geralmente acompanhadas por um tocador de aulos (~oboé
moderno). Tudo isso, porém, é bastante esquemático: a presença do aulos, por
exemplo, mostra que a performance da elegia também era altamente musical. O
próprio aulos parece ter sido usado também na mélica (e nas partes corais no
teatro).
Reconstrução 1: textos
Trabalhar com poesia lírica é ser
obrigado a enfrentar uma série de brechas, maiores ou melhores, e tentar
preenchê-las: textos fragmentários, tamanho do poema, autor e gênero
desconhecidos são os problemas centrais. Em grande parte, trabalha-se com
textos reconstruídos. Para o trabalho de reconstrução, estudos de recepção na
antiguidade são fundamentais (filologia alexandrina; autores que citam trechos
líricos).
Reconstrução 2: contextos
Reconstruir o contexto dos poemas é
igualmente difícil, tanto mais importante porque a maioria dos cantos foi
composta para ocasiões específicas.
Para Bruno Snell (que continua ideias
– românticas – do séc. xix, por ex., Schlegel), o contexto principal teria sido
o da “descoberta do espírito” na Grécia antiga, evidenciado pela presença
maciça do “eu” (ao contrário do que ocorreria na épica) [para uma apresentação
e discussão crítica da teoria, além do texto de Ragusa , cf. a primeira parte do livro de Corrêa, Armas e varões]. Individualidade x destino traçado (épica).Trabalhos mais recentes mostram, ao contrário, a intensa influência recíproca entre a épica e a lírica (que já deve ter tido gêneros bem desenvolvidos bem antes dos primeiros poemas que conhecemos do séc. VII).
Outra importante objeção à teoria de Snell é que ela não leva em conta as condições de performance, na verdade, o coração dos estudos sobre a lírica pelo menos desde os anos 1980. A lírica grega passou a ser vista como parte do que se chama de “song culture” (cultura musical ou cultura do canto), uma cultura onde um canto concentra vários aspectos (sociais, religiosos, políticos, existenciais etc.) da vida [John Herington: song(-dance) culture; Bruno Gentili]. “Todo mundo canta, e o canto é um meio de expressar coisas que importam, além de ser um modo de entretenimento” (p. 15). O foco nos estudos de lírica deixou de ser o autor, e passou a ser o performer e o público; não mais uma lírica da individualidade e auto-expressão subjetiva, mas uma lírica que tem uma função nas vidas das comunidades arcaicas e clássicas: ritual; educação; propaganda; solução de conflito; criação de coerência social; comemoração; celebração. Em suma, muitas das funções da música popular (de certas épocas).
Lírica grega x latina/moderna
A noção de persona lírica é válida para muitas épocas: o ‘eu’ do poeta é algo
impalpável. Diferentes gerações de críticos combateram o biografismo.
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