segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Épica grega: aula A (introdução)

Como o propósito da primeira aula é uma apresentação do curso mas eu, por questões médicas, não poderei estar presente, resumo-a aqui. Dúvidas podem ser respondidas através do blog ou a partir da aula seguinte. Peço que todos leiam o programa, disponível no xerox da Da. Lúcia.

O mais importante é que já na aula seguinte, ou seja, dia 2 de março, iniciará a discussão do texto (o cronograma, portanto, pelo menos por enquanto, não será alterado). Confiram o cronograma e as traduções recomendadas da Odisseia, o poema que será lido ao longo do semestre. Na 1a aula, serão discutidos os cantos 1 e 2; vejam que no cronograma há sempre referência a uma ou mais passagens de cada canto em torno das quais a discussão se estenderá um pouco mais. Será levado em conta que o canto 1 já terá sido visto por todos em IEC-1.

O curso não será uma introdução ab ovo do gênero épico, algo já feito em IEC. O objetivo da aula introdutória seria fazer um brevíssimo resumo das possíveis condições de composição, performance e transmissão dos poemas, algo que passo a fazer aqui.

De certa forma, o contexto dos poemas homéricos é aquele sobre o qual menos sabemos entre os gêneros poéticos gregos nos períodos arcaico e clássico. Paradoxalmente, temos dois longuíssimos poemas completos [à guisa de comparação: no que diz respeito à tragédia, só temos o texto de uma trilogia, a Oresteia, da qual, porém, nos falta o drama satírico, a quarta peça que compunha a tetralogia apresentada ao longo de uma manhã.] mas quase nada sabemos sobre suas condições de composição, performance e transmissão. Sabemos muito mais sobre o gênero dramático, ligado à Atenas do século V.

Hipóteses com fundamentação histórica sobre datação, público e condições socio-políticas da primeira composição dos poemas monumentais, é claro, existem; uma das mais ambiciosas das últimas décadas é a de Douglas Frame apresentada no longuíssimo livro Hippota Nestor, de 2009, do qual há uma resenha em http://bmcr.brynmawr.edu/2010/2010-12-04.html.

Todavia, é necessário nunca perder de vista que reconstruções como as de Frame ou a de Martin L. West [feita em vários e importantes textos e, em parte, apresentada resumidamente em "Homero: a transição da oralidade à escrita", em Letras Clássicas 5: 11-28] são, em boa medida, ficções, ou, no mínimo, hipóteses impossíveis de serem comprovadas empiricamente e dependentes de uma interpretação que um outro intérprete, por sua vez, pode interpretar de modo distinto [cf. o post sobre Foley e Scodel]. Basicamente, o que West (e outros) defendem é que a suposta fixidez dos poemas ao longo dos séculos VII-VI (no caso da hipótese de West, os poemas teria sido compostos na 2a metade do séc. VII; muitos datam os poemas no séc. VIII e outros, em minoria, nos séculos IX ou VI) comprova a escrita por parte de um cantor excepcional que quis preservar seu trabalho para o futuro.

Essa teoria Greg Nagy chama, assaz pejorativamente, de modelo do "big bang". O helenista de Harvard, por sua vez, defende um modelo menos popular entre os homeristas que o de West e esmiuçado, por exemplo, em Homeric questions. O autor defende que a fixidez foi resultado de um longo processo, marcado por diferentes etapas, que se estendeu do século XII ao século II, onde cada etapa se distingue da anterior por um grau crescente de fixidez. Essa fixidez relativa manifestou-se em cada ocasião de performance de poemas que resultaram na Ilíada e na Odisseia tal como as conhecemos hoje, ou seja, tal como foram transmitidas em manuscritos da Idade Média.

Por outro lado, há uma séries de métodos de interpretação dos poemas que prescindem de uma discussão de seus elementos contextuais. O primeiro, por assim dizer, foi o de Aristóteles na Poética. Um modelo de análise interna dos poemas também permeou a atividade dos "filólogos" da biblioteca de Alexandria e seus sucessores na antiguidade, podendo ser resumida no axioma de Aristarco "esclarecer Homero a partir de Homero". Hoje em dia, a escola que, em boa medida, continua essa tradição é a narratologia desenvolvida por Genette e Bal e aplicada em Homero sobretudo pela holandesa Irene de Jong e em trabalhos americanos que se seguiram aos dela (sobre crítica antiga, cf. o post sobre Nünlist).

Outra abordagem que prescinde de um modelo que dê conta de particularidades históricas acerca do modo de composição dos poemas e que tem sido desenvolvida, em várias vertentes, sobretudo a partir dos anos 1980 é o resultado de novos desdobramentos da teoria oral de composição dos poemas homéricos proposta por Milman Parry no final dos anos 1920 e início dos 30 e desenvolvida por seus seguidores, especialmente Albert B. Lord, nas décadas seguintes.

O principal nome é John M. Foley, mas também bastante influentes são os trabalhos de Richard Martin e de Egbert Bakker. Todos têm em comum uma abordagem que prioriza a situação de performance, ou seja,  as consequências, sobretudo, linguísticas e etnológicas, de um modelo de comunicação centrado na interação entre um performer – o aedo ou rapsodo – e seu público.

É essa a abordagem principal que norteará a leitura da Odisseia que vou propor, um poema onde de forma muito mais aguda que na Ilíada, o narrador para de falar e coloca o discurso na boca de suas personagens, tornados performers de discursos, culminando na longa história que Odisseu conta aos feácios do canto 9 ao 12 e nas várias mentiras que Odisseu, disfarçado de mendigo cretense, conta em Ítaca entre os cantos 13 e 19. A Odisseia é uma narrativa composta por uma sucessão de narrativas apresentadas por diferentes performers.

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