terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Não é Lolita: sedução na Odisseia e em Arquíloco 196a W

Escolhi a passagem homérica abaixo para pensar o fragmento de Arquíloco; nota Bruno Gentili que o estilo cômico-sério do autor de jambos pode ser posto em paralelo com a narrativa épica. Trata-se do encontro entre o náufrago Odisseu e a jovem Nausícaa no canto 6 da Odisseia (minha tradução da Odisseia ainda continua inédita):

Mas após deleitar-se com comida, as escravas e ela,
com a bola brincavam, tendo as fitas soltado,
e entre elas Nausícaa alvos-braços dirigia a música.
Ela é como Ártemis indo pelos montes, a verte-setas,
ou pelo mui elevado Taigeto ou pelo Erimanto,
deleitando-se com javalis e corças velozes.
Com ela as ninfas, filhas de Zeus porta-égide,
campestres, brincam, e alegra-se o juízo de Leto;
acima de todas, aquela mantém cabeça e fronte,
é fácil de reconhecer-se, e todas são belas –
assim, entre as criadas, sobressaía a virgem indomada.
Mas quando ia de novo para casa retornar,
após jungir as mulas e dobrar as belas vestes,
nisso teve outra ideia a deusa, Atena olhos-de-coruja:
Odisseu despertaria e veria a jovem de bela face
para que ela à cidade dos varões feácios o guiasse.
A bola então lançou para a criada a rainha;
a criada ela errou, e em fundo remoinho caiu.
Elas soltaram alto grito, e ele despertou, o divino Odisseu.
Sentando-se, revolvia no juízo e no ânimo:
"Ai de mim, a terra de que mortais dessa vez atinjo?
Serão eles desmedidos, selvagens e não civilizados,
ou hospitaleiros, com mente que teme o deus?
É como se me envolvesse feminina gritaria de jovens,
de ninfas, que habitam escarpados cumes de montes,
fontes de rios e campos forrageiros;
talvez esteja perto de homens com voz humana.
Pois bem, eu mesmo vou verificar e ver."
Isso dito, dos arbustos emergiu o divino Odisseu,
e do bosque cerrado quebrou, com mão encorpada, ramo
folheado, para no corpo proteger as vergonhas de homem.
Foi como leão da montanha, confiante na bravura,
que vem castigado por chuva, vento, e seus olhos
faíscam. Mas ele vai para o meio de bois e ovelhas
ou atrás de corças selvagens; ordena-lhe o estômago
que, para testar as ovelhas, vá a uma casa protetora –
assim ia Odisseu às jovens belas-tranças
unir-se, embora nu: a necessidade o atingiu.
Aterrorizante pareceu a elas, enfeado pela salsugem,
e abalaram, uma para cada lado nas praias salientes.
Só a filha de Alcínoo ficou, pois nela Atena
coragem no peito pôs e tirou o medo dos membros.
Parada, encarou-o; ele, Odisseu, cogitou
se, tocando os joelhos, suplicaria à jovem de bela face
ou assim mesmo, de longe, com palavras amáveis
suplicaria que mostrasse a cidade e desse-lhe roupas.
Pareceu-lhe, ao refletir, ser mais vantajoso assim,
de longe suplicar com palavras amáveis,
para a jovem não se enraivecer, tocada nos joelhos.
De pronto amável e vantajoso discurso lhe disse:
"Imploro-te, senhora; és uma deusa ou mortal?
Se és deusa, uma dos que do largo páramo dispõem,
eu a ti a Ártemis, a filha do grande Zeus,
em aparência, altura e físico próxima, comparo;
se és um mortal dos que moram sobre a terra,
três vezes ditosos são teu pai e a senhora tua mãe,
três vezes ditosos os irmãos; muito o ânimo deles,
sempre com gáudio, rejubila por tua causa,
ao mirarem tal broto dirigir-se à pista de dança.
Será no coração, de longe, o mais ditoso de todos
quem prevalecer com dádivas e para casa te conduzir.
Nunca vi mortal assim com meus olhos, 160
homem nem mulher, e reverência me toma ao mirar-te.
Sim, em Delos, certa vez, junto ao altar de Apolo, um tal
rebento de palmeira, jovem e ascendente, percebi;
pois fui também até lá, e grande tropa seguia-me
na jornada na qual muitas agruras me atingiriam –
assim como, ao vê-lo, assombrei-me no ânimo
muito tempo, pois nunca ascendeu tal tronco da terra,
a ti, mulher, admiro, assombro-me e temo terrivelmente
nos joelhos tocar-te; e cruel aflição me atinge.
Ontem, no vigésimo dia, escapei do mar vinoso;
até então sempre me levavam onda e ventosas rajadas
desde a ilha de Ogígia. Agora a divindade me expeliu,
para que também aqui eu sofra um mal; vê, não creio
que parará, mas deuses, antes, muitos ainda completarão.
Tem piedade, senhora; de ti, após muitos males padecer,
aproximei-me por primeiro; não conheço nenhum outro
homem dos que dessa cidade e terra dispõem.
A cidade mostra e dê-me trapos para recobrir-me,
se trouxeste um saco de roupas ao vires para cá.
Que os deuses te dêem tudo que em teu juízo desejas,
marido e casa, e te presenteiem com concórdia
distinta; de fato, nada é mais forte e melhor que isto,
quando, em concórdia nas ideias, dominam a casa
marido e mulher: há muitas agonias a inimigos
e alegrias a amigos, e daqueles é máxima a reputação."

Para uma tradução do 196a, cf. o livro Um bestiário arcaico de Paula Corrêa ou o artigo de Nely Pessanha, "O discurso amoroso de Arquíloco". Classica 5/6 (1993): 167-71

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