domingo, 20 de fevereiro de 2011

Hêrôes e hêmitheoi, heróis e semideuses, em Homero

A possível dimensão cultual dos heróis homéricos, ou seja, até que ponto haveria ou não uma influência recíproca entre o culto aos heróis tal como atestado por vestígios materiais e por textos posteriores à Ilíada e à Odisseia, e a representação dos heróis na narrativa épica é um ponto controverso entre filólogos, historiadores e arqueólogos.

Uma forma de construir o problema é perguntando se o público da épica, nos séculos VIII-VII, percebia nos poemas uma versão idealizada, ainda que deslocada para o passado, das próprias elites contemporâneas ou, ao contrário, a representação de um mundo irremediavelmente perdido e distante.

Dois excelentes textos [a bibliografia é enorme; cf. os Companion da Brill e da Cambridge U.P.] que, mais recentemente abordaram o problema e nos quais está baseada minha sinopse (bastante genérica) são:

CRIELAARD, Jan Paul (2002) "Past or present? Epic poetry, aristocratic self-representation, and the concept of time in the eigth and seventh centuries BC". In: MONTANARI, F. (org.) Omero tremila anni dopo. Roma: Edizioni di storia e letteratura.
WEES, Hans van (2006) "From kings to demigods: epic heroes and social change c. 750-600 BC." In: DEGER-JALKTZY, Sigrid; LEMOS, Irene S. (org.) Ancient Greece: From the Mycenaean Palaces to the Age of Homer. Edinburgh Leventis Studies 3. Edinburgh: Edinburgh University Press.

Os poemas certamente refletem períodos históricos distintos, mas isso não quer dizer que Homero seja um historiador ruim. Por um lado, parece ser um objetivo do gênero o engrandecimento do passado, portanto, da Idade do Bronze (tardia); todavia, a arqueologia permite estabelecer vários paralelos entre o modo de vida da elite nos sécs. VIII-VII e o das personagens homéricas, atestados, por ex., em práticas funerários.

Para o arqueólogo Crielaard (p. 284), através de diversas táticas operadas pela elite e pelo modo como são construídos os poemas, "a elite criou um mundo 'supracotidiano' e uma ordem atemporal que transcendia as diferenças entre passado e presente".

Em Homero, "a concepção cíclica do temoo fornece ao mundo heróico uma estrutura atemporal; como resultado, os ventos do passado dão destaque para as ações do presente" (p. 278). Nos séculos VIII e VII, "foi importante para a elite criar uma autoimagem de uma vida num presente perpétuo. É essa concepção de tempo cíclico, que permite que as virtudes sejam regeneradas em cada geração, que torna difícil defender-se que os poemas épicos homéricos recriem uma época perdida, heroica" (p. 282).
O historiador van Wees dá um passo além e contextualiza essa idealização na vida religiosa arcaica, em especial, no culto aos heróis, através do que ele defende que há sim um corte entre o mundo dos poemas e o mundo do público.

Para ele, Homero e Hesíodo pensavam no passado como um época na qual o mundo era habitado por uma raça semi-divina. "Semideuses" seria uma categoria entre mortais e deuses, sendo que toda uma raça compartilharia desse status. O termo aparece em Hesíodo e Homero (sempre no plural), e é o mesmo status daqueles que, em Homero, são chamados de hêrôes, termo que, portanto, para van Wees, ao contrário da maioria dos críticos, não tem um sentido secular.

Assim, "Homero e Hesíodo simplesmente usam hêrôs no seu sentido religioso normal porque eles falam de uma época na qual todos os homens vivos eram hêrôs e semideuses" (p. 370). Para o historiador, porém, Homero, que sabia do poder post-mortem do herói [crença largamente documentada nos séculos VI e V], tinha motivos para sonegá-lo.

A resposta de van Wees para o problema é que, como o mundo dos heróis é uma idealização da plateia histórica, aristocrática, o máximo que um herói épico poderia almejar seria a fama, ou seja, algo que estaria ao alcance desses mesmos aristocratas de carne e osso, como atestado no poema de Calino 1 W. Bela propaganda ideológica afirmar-se que nem mesmo os filhos de deuses poderiam almejar algo maior que fama.

Acerca dos problemas esboçados acima, cf., em português, por ex., SARIAN, Haiganuch (1996/97) "Culto heróico, cerimônias fúnebres e a origem dos Jogos Olímpicos". Classica 9/10: 45-60

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