quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lírica grega: aula A (Budelmann 2)

Estudos sobre lírica grega

Gêneros e categorias

Já na antiguidade, buscou-se distinguir gêneros e subgêneros para se entender a forma e o propósito de um determinado grupo de cantos. Muitos dos termos estão presentes nos próprios poemas, mas as primeiras tentativas teóricas de definição e classificação são bem posteriores. Uma outra ferramenta para se distribuir os poemas em grandes grupos são as seguintes dicotomias, que têm suas limitações e devem ser usadas com cuidado, de preferência sendo pensadas como escalas, onde um poema particular, em uma ocasião particular, poderia estar mais perto de um polo que de outro:

Performance solo x coral (canto coral x monódia): muitas vezes, não sabemos mais como era a performance. Muitos poetas parecem ter escrito para os dois modos. O modo também poderia variar nas reperformances [=todas as performances do canto com exceção da primeira] do canto.

Público x privado: desde grandes festivais organizados por uma polis até apresentações fechadas para um público pequeno. Aqui também a reperformance nos alerta a pensar até que ponto um poema teria sido composto estritamente para um ou outro tipo de público. Além disso, o sentido de privado para os gregos não tem o mesmo sentido que para nós. Um simpósio, por exemplo, o mais importante local de performance no polo privado da escala, era uma ocasião em que se poderia discutir importantes assuntos públicos. Casamentos e funerais, onde o canto também se fazia presente, tinham igualmente um forte caráter público.

Elite x não-elite: os cantos refletem a estratificação social e as tendências de mudança, embora nunca simplesmente descrevam realidades sociais. [Para uma utilização forte dessa polaridade, cf. Kurke 2007 na bibl.]

Cantado x falado: de forma bem geral, pode-se separar a lírica cantada (=mélica) da poesia falada [ou recitada] (elegia, jambo e épica) [assim como, de forma bem geral, tragédias e comédias têm partes faladas por personagens e cantadas pelo coro]. O metro (bastante regular nos jambos e elegias; bastante diferenciado na mélica) confirma essa divisão, e o fato de nunca os poetas elegíacos e jâmbicos usarem "melos" em referência a seus poemas. A mélica era normalmente acompanhada de instrumentos de corda (lira) tocados pelos próprios cantores, enquanto que as elegias (quase nada se sabe sobre o jambo) devem ter sido geralmente acompanhadas por um tocador de aulos (~oboé moderno). Tudo isso, porém, é bastante esquemático: a presença do aulos, por exemplo, mostra que a performance da elegia também era altamente musical. O próprio aulos parece ter sido usado também na mélica (e nas partes corais no teatro).

Reconstrução 1: textos

Trabalhar com poesia lírica é ser obrigado a enfrentar uma série de brechas, maiores ou menores, e tentar preenchê-las: textos fragmentários, tamanho do poema, autor e gênero desconhecidos são os problemas centrais. Em grande parte, trabalha-se com textos reconstruídos. Para o trabalho de reconstrução, estudos de recepção na antiguidade são fundamentais (filologia alexandrina; autores que citam trechos líricos).

Reconstrução 2: contextos

Reconstruir o contexto dos poemas é igualmente difícil, tanto mais importante porque a maioria dos cantos foi composta para ocasiões específicas.

Para Bruno Snell, o contexto principal teria sido o da "descoberta do espírito" na Grécia antiga, evidenciado pela presença maciça do "eu" nos poemas (ao contrário do que ocorreria na épica) [para uma apresentação e discussão crítica da teoria, além do texto de Ragusa citado há dois posts atrás, cf. a primeira parte do livro de Corrêa, Armas e varões].

Trabalhos mais recentes mostram, ao contrário, a intensa influência recíproca entre a épica [a maior parte dos estudiosos datam a forma (quase) final da Ilíada e da Odisseia, ou seja, uma forma bastante próxima daquela que hoje conhecemos, entre os séculos VIII e VI] e a lírica (que já deve ter tido gêneros desenvolvidos bem antes dos primeiros poemas que conhecemos do séc. VII).

Outra importante objeção à teoria de Snell é que ela não leva em conta as condições de performance, o coração dos estudos sobre lírica pelo menos desde os anos 1980. A lírica grega passou a ser vista como parte do que se chama de "song culture" (cultura musical ou cultura do canto), uma cultura onde um canto concentra vários aspectos (sociais, religiosos, políticos, existenciais etc.) da vida. "Todo mundo canta, e o canto é um meio de expressar coisas que importam, além de ser um modo de entretenimento" (p. 15).

O foco nos estudos de lírica deixou de ser o autor, e passou a ser o performer e o público; não mais uma lírica da individualidade e auto-expressão subjetiva, mas uma lírica que tem uma função nas vidas das comunidades arcaicas e clássicas.
[continuação do resumo do texto de Budelmann iniciado no penúltimo post]

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