Abaixo, o início de um artigo meu, de 2010, que está on-line:
"A deusa compõe um ‘mito’: o jovem Odisseu em busca de veneno (Odisseia I, 255-68)". Nuntius Antiquus 6: 7-27
Através de um longo discurso no início da Odisseia (Od. 1, 253-305), Atena, disfarçada do táfio Mentes, finalmente consegue fazer Telêmaco deixar de lado sua inércia e ceticismo, gerados pela ausência do pai, e passar a agir – de forma intermitente e nem sempre muito decidida, é verdade – como dono de sua propriedade e legítimo representante de sua gloriosa linhagem.
Fundamental como elemento persuasivo e motivador é a história através da qual Atena/Mentes conta como Odisseu, em um passado distante, conseguiu obter veneno para suas flechas – combinação singular nos poemas homéricos – de seu pai:
Ah! Se de volta à casa, nas portas da frente,
estivesse com elmo, escudo e duas lanças,
tal como eu pela primeira vez o mirei,
em nossa casa bebendo e deleitando-se,
voltando de Éfira, de junto de Ilo, filho de Mermero,
pois foi também até lá sobre nau veloz, Odisseu,
em busca de poção homicida para com ela
untar flechas ponta-brônzea. Mas aquele não lha
deu, pois temia indignar os deuses sempre vivos;
mas meu pai lha deu, pois o amava por demais.
Assim encontrasse os pretendentes Odisseu;
todos seriam destino-veloz e bodas-amargas. (Od. 1, 255-66)
Vários críticos, de forma mais ou menos escandalizada, rejeitaram essa história como imprópria do herói homérico, vale dizer, épico. A representação de Odisseu conteria resquícios da figura de um "arquitrickster", herança autólica que o(s) autor(es) da Ilíada e da Odisseia teria(m) sido maximamente zeloso(s) em purgar, ou então que o autor da Odisseia usaria para criar um chiaroscuro que destacaria o problema moral da vingança de Odisseu ou a oposição entre dois modos de pensamento ou ação, só um deles épico-heroico.
Embora alguns críticos reconheçam que a história prefigure, de forma mais ou menos enfática, a vingança contra os pretendentes (função extradiegética) e, além disso, contenha um modelo de ação para Telêmaco, mais particularmente, a sugestão de que só através de um ardil poder-se-ia vencer um bando tão numeroso (função intradiegética), mesmo esses críticos comumente colocam um suposto problema moral no centro da história.
Assim, o que farei aqui é colocar em questão a moralização dessa história através (1) da discussão do tipo de discurso que ela implica e (2) e (3) da análise dos temas épicos que ela pressupõe.
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