segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

John K. Davies: a historiografia da Grécia Arcaica (cap. 1 'Companion to Archaic Greece')


A armadilha da terminologia: arcaico (escolhido sob a perspectiva de uma Grécia Clássica) não é um termo bom para uma época efervescente. As datas também são enganadoras (dos 1os Jogos Olímpicos às Guerras Pérsicas).

Três estilos ou correntes na moderna historiografia da Grécia Arcaica (=GA): o instituído pelos historiadores antigos (baseado sobretudo em fontes literárias, épica e lírica); o dos historiadores culturais; o dos arqueólogos. Os 3 começaram a convergir a partir de 1980.

As narrativas em grande escala

Adotada pelos historiadores antigos, uma forma de arte no sec. 18. Para a GA, como narrar se só se tem fragmentos e um monte de mitos? Lendo-os de forma simbólica ou reestoricizando-os. Cf. os seguintes projetos, cada um condicionado por diferentes interesses acadêmicos, políticas nacionais e fontes materiais disponíveis, entre outros fatores: George Grote (História da Grécia, 1846-56: sobretudo documentos literários); Georg Busolt (História Grega 1893-1904, 2a ed.: influência da arqueologia); K. J. Beloch (História Grega, 1912-27, 2a ed.: ensaio interpretativo; racista; ceticismo com as informações da tradição antiquária). Nesse momento, a enxurrada de inscrições entre outras fontes tornou impossível o conhecimento da história por um só indivíduo. Com isso, as editoras passam a privilegiar monografias por especialistas englobando períodos de até 3 séculos. Outra forma foi o multi-volume multi-autoral, como o The Cambridge Ancient History, via de regra, com capitulos englobando regiões geográficas definidas. É mais recente a narrativa de regiões cujo conhecimento parte de poucas fontes literárias, exigindo a integração entre arqueologia e história (por ex., N da Grécia).

História cultural

Tentativas de construir a moldura (frame) das grandes narrativas, ou seja, as experiências dos indivíduos. No sec. 19, geralmente a partir de fontes literárias. O pai de todos é Jacob Burckhardt (História da cultura grega): uso da religião (cultos, mitos) + arte e literatura grega para retratar a sensibilidade e experiência grega, em especial, rejeitando a tirania dos fatos históricos para identificar mentalidades, padrões e crenças [sim, não é por acaso que você lembrou do Vernant].

Mas o sec. 20 foi um cipoal de tendências; por ex., no caso da religião: Martin Nilsson (cultos e práticas religiosas como áreas da vida mais ou menos autônomas); seguidores de Durkheim (religião grega fortemente embutida na sociedade, manipulada por políticos e servindo, sobretudo, interesses da comunidade); seguidores de Freud e, depois, de Lévi-Strauss (simbolismos atemporais); os que levam o papel da espiritualidade a sério (oráculos; cultos de mistério) etc.

História cultural marxista, interessada, por ex., na vida fora dos centros urbanos; "comércio internacional"; adoção (ou não) da moeda; alimentação (simpósios e outros eventos coletivos, em especial, das relações humanas pressupostas). No caso dessas relações humanas destaca-se: realeza (sobrevivência ou reinvenção pós-homérica); aristocracia (difícil de definir, salvo através de um conjunto solto de modos de comportamento permitido a uma classe ociosa ["leisure class"] que vivia de renda, por ex., a cultura da competição física); ascensão da polis (estudos começaram em 1937; destaque para o Copenhagen Polis Project) e a ideia de cidadania.

Editorialmente, destaque para os multi-volumes coletivos italianos Storia e civiltà dei Greci e I Greci, o segundo marcado pelo interesse pela recepção da cultura grega. Ambos se caracterizam por uma tentativa de reunificação após um século de especializações crescentes.

A evidência física

A mais importante e inovadora, compreende o estudo de sítios e artefatos. Não há textos prontos: as evidências primeiro precisam ser achadas, estudadas, classificadas e publicadas.
Na história da ciência, os objetos vieram primeiro. Primeiro foram determinantes os interesses do historiador da arte. No séc. 19, com o aumento do material, a cerâmica recebeu destaque (estilos; procedência).
A partir de 1870, grandes escolas de arqueologia exploraram os principais sítios acessíveis (Acrópole de Atenas – já desde 1830 –, santuários, cemitérios, agrupamentos populacionais mais importantes).

A história continua: a partir de 1970, as 3 correntes passaram a perceber a necessidade da cooperação. Com diferenciações teóricas crescentes na interpretação dos textos, estes passaram a ser fontes mais complicadas para o historiador utilizar (isso vale não só para Homero, mas também para Heródoto).
Uma das alternativas é o estudo das palavras complexas (timê, hubris, aidôs...) que refletem o comportamento e os "valores" da classe ociosa ou o desenvolvimento jurídico (dikê, nomos). Outra alternativa é o estudo das imagens como "representações conscientes ou inconscientes do que indivíduos ou grupos sentiram como projeções apropriadas de suas identidades". Outra foi um novo interesse na influência do Oriente. Novas visões da cidade, especialmente daquelas que não produziram muita documentação literária.

Atenas e Esparta têm sido os focos principais. Nada mais da "miragem espartana" e da sua sociedade militarista conservadora: a Lacônia como uma região economicamente coerente e a sociedade e governo espartanos mais próximos do mainstream grego. Atenas e o desenvolvimento da democracia (reformas de Clístenes) também geraram vários trabalhos, por ex., sobre os limites do termo "democracia" e a comparação com a democracia moderna.

Seis (meta)narrativas: Grécia Arcaica (Snodgrass, 1980); problema do letramento; mudanças nas tecnologias de guerra (armadura hoplítica bem estabelecida no fim do séc. 8); períodos (Idade do Ferro; Creta Arcaica) e lugares (N da Grécia; ilhas; partes menos glamurosas do Peloponeso) negligenciados estão sendo resgatados; o artesão e as habilidades tecnológicas (produção e trabalho); um olhar de trás para frente (sobretudo do arqueólogo ou influenciado por ele: fronteira, não muito clara, sendo dissolvida entre Idade das Trevas e Época Arcaica). Consequências para os estudos sobre colonização (mais desorganizada e individualizada). Etnicidade: o termo "grego" é um anacronismo para as gerações anteriores às Guerras Pérsicas e talvez até mesmo para as anteriores a Heródoto.

Penélope e o cortejo dos pretendentes

Quando começa a Odisseia, Penélope tem duas opções: voltar para a casa do pai e, na sequência, casar, o que ela não quer; ficar em Ítaca, na casa de Odisseu, e sofrer a pressão de se casar o mais rápido possível.


Não é claro quão ativa ou passiva é Penélope, ou seja, até que medida ela apenas sofre a pressão dos pretendentes ou consegue controlar sua vida, ou seja, seu casamento. No segundo caso, ela precisa enfrentar o filho, que quer perder o mínimo possível de seus bens, os pretendentes, que querem casar o mais rápido possível (o que é razoável), e a a opinião da comunidade, pois não existe certeza que Odisseu está morto.

Um excelente artigo que discute a representação de Penélope é FLAIG, Egon (1995) "Tödliches Freien: Penelopes Ruhm, Telemachs Status und die sozialen Normen." Historische Anthropologie 3: 364-88.
Para o autor, há um conflito insolúvel na Odisseia (por isso a comunidade não age): Penélope busca o máximo de renome; Telêmaco quer manter o máximo do poder e riqueza do pai; os pretendentes querem forçar Penélope a casar o mais rápido possível. Penélope age contra as regras da nobreza, e os pretendentes usam de violência inaudita.

Abaixo, algumas passagens da Odisseia onde se fala sobre o dilema (entre parênteses, quem fala):

1.249 (Telêmaco): Penélope poderia recuar-se a casar. Mas isso ela não quer. Para Telêmaco, trata-se de um casamento odioso (para de Jong, focalização de Penélope, ou seja, ela considera o casamento ‘odioso’, não Telêmaco), supostamente porque ainda há uma possibilidade que o pai esteja vivo.

1.275 (Atena): se o ânimo de Penélope a impele a ser desposada, deveria ir para a casa do pai.
1.292: se Telêmaco ouvir que o pai está morto, Telêmaco deve realizar os ritos e entregar a mãe, o que sugere que somente com a certeza da morte do pai, Telêmaco pode passar a herdeiro.

2.50 Telêmaco apresenta uma visão diferente, talvez por questões retóricas (cf. de Jong): a mãe é atacada, cercada, contra sua vontade.
2.52-4: os pretendentes deveriam cortejar Penélope junto ao pai dela, Icário, mas disso têm medo.

2.85ss. (Antínoo): a grande culpada dos males que assolam Telêmaco é Penélope. Ela engana o ânimo dos pretendentes há 4 anos.
Difícil não concordar que os versos seguintes (91-2; repetidos mais tarde por Atena!) indiquem que Penélope diz aos pretendentes que quer casar: "A todos dá esperança e faz promessas a cada varão, / enviando recados; e sua mente concebe outras coisas." O verso 96 deixa claro que ela se declarou viúva.

2.111-14: Antínoo propõe que Telêmaco envie a mãe para o pai, ou seja, que Telêmaco aja como senhor da sua casa, já que a pressão exercida sobre Penélope não faz efeito. Com isso, os pretendentes também encerrariam o conflito com a comunidade.

13.377-80 (Atena para Odisseu): "que (sc. os pretendentes), em tua morada, por três anos, arrogam-se senhores, / cortejando tua excelsa esposa e presentes oferecendo; / ela, chorando sempre pelo teu retorno no ânimo, / a todos dá esperança e faz promessas a cada varão."
Flaig 372 insiste na importância dos presentes dados a Penélope; aceitando-os sem querer dar nada em troca, ela está agindo contra as normas aristocráticas.

16.126-7 (Telêmaco para o Cretense): "Ela, nem recusar o odioso casamento nem completá-lo, / disso não é capaz...". Isso claramente indica que Penélope poderia interromper a corte se ela quisesse, ou seja, foi ela que a iniciou.

18.301-3: os presentes que Penélope consegue dos pretendentes são levados para seu quarto, não para a câmara de riquezas da casa. Flaig 365 defende que Penélope levaria esses valiosos presentes junto consigo quando casasse. Com isso, há transgressão de Penélope, já que para esse autor os presentes vão para o kurios que confere um dote à noiva. Mas não é Telêmaco, desde o canto 2, o kurios de Penélope?

21.75-9: pela primeira vez é dito que Penélope sairá da casa de Odisseu com seu marido (Flaig 375)

24.126-7 (Anfimédon para Agamêmnon no Hades): "ela nem recusava o odioso casamento nem o completava, / p
lanejando para nós a morte e a negra perdição. »

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Épica grega: programa e traduções

Aparentemente, o programa no xerox da Da Lúcia saiu com um problema; ele pode ser encontrado on-line aqui:
http://www.fflch.usp.br/dlcv/Programas%202011/epica%20grega.pdf

Peço que todos tenham lido os cantos 1-2 da Odisseia para a próxima quarta. Nenhuma tradução será disponibilizada no xerox é a leitura é fundamental para o acompanhamento da aula. Neste blog, somente postarei, eventualmente, pequenos trechos de minha tradução ainda inédita.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A ética e a estética da vingança: Arquíloco 171-82 W e a 'Odisseia'

A justiça retributiva por meio da vingança (tisis), um elemento da moralidade grega presente na fábula da águia e da raposa tal como parece ter sido representada por Arquíloco (cf. frags. 172-81 W), é um dos dois modelos narrativos (cf. Loney nos marcadores) basilares da Odisseia (o outro sendo o nostos, a narrativa de retorno). O narrador explicita isso maximamente quando faz Zeus contar, logo no início do poema, a vingança de Orestes contra Egisto, que matara Agamêmnon, pai de Orestes:

"Incrível, não é que mortais aos deuses responsabilizam?
Dizem de nós vir os males; mas eles também por si mesmos,
graças à sua iniquidade, além do quinhão têm aflições,
como agora Egisto: além do quinhão, do filho de Atreu
desposou a lídima esposa e a ele, que retornara, matou,
sabendo do abrupto fim, pois já lhe disséramos,
enviando Hermes, o matador-da-serpente aguda-mirada,
que não o matasse nem cortejasse a consorte:
‘Por Orestes se dará a vingança pelo filho de Atreu
quando jovem tornar-se e desejar sua terra.’
Assim falou Hermes, mas não ao juízo de Egisto
persuadiu, benevolente. Agora tudo junto pagou."

Elizabeth Irwin, em um artigo de 1998 ["Biography, fiction, and the Archilochean ‘ainos’." JHS 118: 177-83], defende que a fábula usada por Arquíloco também evoca 1) a perda dos filhos em virtude da quebra de um acordo de casamento (Licambes – Arquíloco) e 2) o papel do poeta (Arquíloco) de acabar com os filhos do seu inimigo (Neobule e sua irmã) através da invectiva. Para o poeta, os filhotes da raposa são os filhos que o casamento não vai trazer.

Egisto casou, mas seu casamento foi estéril; ele não teve um filho que pudesse vingar o pai.

Lírica: aula B (correção-traduções)

No material que deixei no xerox, não está o artigo de Nely Pessanha, que pode ser encontrado na biblioteca. Deixei uma outra tradução: favor ler este fragmento e os frags. 172-81 W para a próxima aula, dia 2.

Sexo na 'Odisseia' e em Arquíloco

Nada de sexo explícito, de referência aos órgãos genitais em Homero em um contexto sexual; mesmo como lugar de ferimento ou em uma exposição punitiva, o uso do termo aidôs – no plural, "vergonhas", "private parts – para a genitália masculina é raro (cf. 'Ilíada').

Assim falou, o sol desceu e as trevas vieram;
os dois tendo ido ao recesso da cava gruta,
deleitaram-se com o amor, lado a lado ficando.
(Odisseia 5, 225-27: Calipso e Odisseu)

‘Vai já ao chiqueiro, deita com os outros companheiros.’
Assim falou, e eu puxei a afiada espada da coxa
e lancei-me contra Circe como que louco por matá-la.
Ela, gritando alto, jogou-se, pegou meus joelhos
e a mim, lamentando-se, palavras plumadas dirigiu:
‘Quem és – tua origem? Onde estão cidade e ancestrais?
(...)
Vamos, põe a espada na bainha, e os dois então
subiremos no nosso leito, para que, tendo-nos unido
num enlace amoroso, confiemos um no outro.’
Assim falou, mas eu, respondendo, disse-lhe:
‘Circe, como pedes para ser amigável contigo?
Tu porcos tornaste meus companheiros no palácio
e, tendo-me aqui, com mente ardilosa pedes
para ir até o quarto e subir no teu leito, 340
para que, quando nu, me tornes vil e emasculado.
E eu não poderia querer subir no teu leito
exceto se ousares, deusa, a grande jura jurar-me
de que, contra mim, outra desgraça não planejarás.’
Assim falei, e ela logo jurou, como eu pedira. 345
Todavia, após jurar por completo esse juramento,
então eu subi ao leito mui belo de Circe.
(Odisseia 10, 320-47: Odisseu conta aos feácios que Circe não conseguiu enfeitiçá-lo; não sei se antes de Freud alguém pensaria na ‘espada’ como um objeto fálico. Odisseu, por outro lado, menciona na sequência a possibilidade de perder sua virilidade.

A sexualidade, por outro lado, é um lugar comum jâmbico já em Arquíloco (a mesma diferenciação temática na oposição tragédia x comédia):

35 W
Nossa vaca, trabalhadora, está na casa,
com chifres enrugados, experiente no trabalho
[Possível menção a uma prostituta.]

42 W
assim como cerveja com canudo um trácio
ou frígio, sorvia: inclinada, trabalhava duro
[Possível alusão a uma cena de felação.]

44 W
Muita espuma havia em torno da boca
[leite?]

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Grécia Arcaica: companion hiperbólico

"Nada mais parece seguro no estudo da Grécia Arcaica". Assim começa esse estonteante volume, na verdade, o resultado das décadas que viram os trabalhos inovadores de, entre outros, Jonathan Hall, François de Polignac, Robin Osborne e Nino Luraghi:

http://bmcr.brynmawr.edu/2011/2011-02-45.html

Quem quer discutir seu Homero e seus líricos, precisa estar com sua História e sua Arqueologia em dia. Para quem tiver fôlego e coragem e, talvez, já tiver passado por uma história da Grécia Antiga mais introdutória, esse Companion parece ser o ideal.

Confesso que precisei da resenha para me estimular a enfrentá-lo. Para um helenista, nem sempre é fácil enfrentar volumes bastante técnicos como, por exemplo, An archeology of ancestor: tomb cult and hero cult in Early Greece, da arqueóloga Carla Antonaccio. Assim, ter passado por um manual de história e, depois, por um companion como esse, talvez facilite as coisas.

Vou tentar ler um capítulo a cada três dias nos próximos 4 meses desse volume onde praticamente só tem feras. À medida que for lendo, vou tentar postar resumos (bem simplinhos, já que não sou historiador e muito menos arqueólogo) no blog (vou meio que imitar a Julia do filme duplamente homônimo).

Não é Lolita: sedução na Odisseia e em Arquíloco 196a W

Escolhi a passagem homérica abaixo para pensar o fragmento de Arquíloco; nota Bruno Gentili que o estilo cômico-sério do autor de jambos pode ser posto em paralelo com a narrativa épica. Trata-se do encontro entre o náufrago Odisseu e a jovem Nausícaa no canto 6 da Odisseia (minha tradução da Odisseia ainda continua inédita):

Mas após deleitar-se com comida, as escravas e ela,
com a bola brincavam, tendo as fitas soltado,
e entre elas Nausícaa alvos-braços dirigia a música.
Ela é como Ártemis indo pelos montes, a verte-setas,
ou pelo mui elevado Taigeto ou pelo Erimanto,
deleitando-se com javalis e corças velozes.
Com ela as ninfas, filhas de Zeus porta-égide,
campestres, brincam, e alegra-se o juízo de Leto;
acima de todas, aquela mantém cabeça e fronte,
é fácil de reconhecer-se, e todas são belas –
assim, entre as criadas, sobressaía a virgem indomada.
Mas quando ia de novo para casa retornar,
após jungir as mulas e dobrar as belas vestes,
nisso teve outra ideia a deusa, Atena olhos-de-coruja:
Odisseu despertaria e veria a jovem de bela face
para que ela à cidade dos varões feácios o guiasse.
A bola então lançou para a criada a rainha;
a criada ela errou, e em fundo remoinho caiu.
Elas soltaram alto grito, e ele despertou, o divino Odisseu.
Sentando-se, revolvia no juízo e no ânimo:
"Ai de mim, a terra de que mortais dessa vez atinjo?
Serão eles desmedidos, selvagens e não civilizados,
ou hospitaleiros, com mente que teme o deus?
É como se me envolvesse feminina gritaria de jovens,
de ninfas, que habitam escarpados cumes de montes,
fontes de rios e campos forrageiros;
talvez esteja perto de homens com voz humana.
Pois bem, eu mesmo vou verificar e ver."
Isso dito, dos arbustos emergiu o divino Odisseu,
e do bosque cerrado quebrou, com mão encorpada, ramo
folheado, para no corpo proteger as vergonhas de homem.
Foi como leão da montanha, confiante na bravura,
que vem castigado por chuva, vento, e seus olhos
faíscam. Mas ele vai para o meio de bois e ovelhas
ou atrás de corças selvagens; ordena-lhe o estômago
que, para testar as ovelhas, vá a uma casa protetora –
assim ia Odisseu às jovens belas-tranças
unir-se, embora nu: a necessidade o atingiu.
Aterrorizante pareceu a elas, enfeado pela salsugem,
e abalaram, uma para cada lado nas praias salientes.
Só a filha de Alcínoo ficou, pois nela Atena
coragem no peito pôs e tirou o medo dos membros.
Parada, encarou-o; ele, Odisseu, cogitou
se, tocando os joelhos, suplicaria à jovem de bela face
ou assim mesmo, de longe, com palavras amáveis
suplicaria que mostrasse a cidade e desse-lhe roupas.
Pareceu-lhe, ao refletir, ser mais vantajoso assim,
de longe suplicar com palavras amáveis,
para a jovem não se enraivecer, tocada nos joelhos.
De pronto amável e vantajoso discurso lhe disse:
"Imploro-te, senhora; és uma deusa ou mortal?
Se és deusa, uma dos que do largo páramo dispõem,
eu a ti a Ártemis, a filha do grande Zeus,
em aparência, altura e físico próxima, comparo;
se és um mortal dos que moram sobre a terra,
três vezes ditosos são teu pai e a senhora tua mãe,
três vezes ditosos os irmãos; muito o ânimo deles,
sempre com gáudio, rejubila por tua causa,
ao mirarem tal broto dirigir-se à pista de dança.
Será no coração, de longe, o mais ditoso de todos
quem prevalecer com dádivas e para casa te conduzir.
Nunca vi mortal assim com meus olhos, 160
homem nem mulher, e reverência me toma ao mirar-te.
Sim, em Delos, certa vez, junto ao altar de Apolo, um tal
rebento de palmeira, jovem e ascendente, percebi;
pois fui também até lá, e grande tropa seguia-me
na jornada na qual muitas agruras me atingiriam –
assim como, ao vê-lo, assombrei-me no ânimo
muito tempo, pois nunca ascendeu tal tronco da terra,
a ti, mulher, admiro, assombro-me e temo terrivelmente
nos joelhos tocar-te; e cruel aflição me atinge.
Ontem, no vigésimo dia, escapei do mar vinoso;
até então sempre me levavam onda e ventosas rajadas
desde a ilha de Ogígia. Agora a divindade me expeliu,
para que também aqui eu sofra um mal; vê, não creio
que parará, mas deuses, antes, muitos ainda completarão.
Tem piedade, senhora; de ti, após muitos males padecer,
aproximei-me por primeiro; não conheço nenhum outro
homem dos que dessa cidade e terra dispõem.
A cidade mostra e dê-me trapos para recobrir-me,
se trouxeste um saco de roupas ao vires para cá.
Que os deuses te dêem tudo que em teu juízo desejas,
marido e casa, e te presenteiem com concórdia
distinta; de fato, nada é mais forte e melhor que isto,
quando, em concórdia nas ideias, dominam a casa
marido e mulher: há muitas agonias a inimigos
e alegrias a amigos, e daqueles é máxima a reputação."

Para uma tradução do 196a, cf. o livro Um bestiário arcaico de Paula Corrêa ou o artigo de Nely Pessanha, "O discurso amoroso de Arquíloco". Classica 5/6 (1993): 167-71

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Lírica: aula B

Favor lerem, além das traduções (cf. cronograma), o texto que será deixado no xerox hoje, 2a feira, acerca de Licambes e suas filhas.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Hêrôes e hêmitheoi, heróis e semideuses, em Homero

A possível dimensão cultual dos heróis homéricos, ou seja, até que ponto haveria ou não uma influência recíproca entre o culto aos heróis tal como atestado por vestígios materiais e por textos posteriores à Ilíada e à Odisseia, e a representação dos heróis na narrativa épica é um ponto controverso entre filólogos, historiadores e arqueólogos.

Uma forma de construir o problema é perguntando se o público da épica, nos séculos VIII-VII, percebia nos poemas uma versão idealizada, ainda que deslocada para o passado, das próprias elites contemporâneas ou, ao contrário, a representação de um mundo irremediavelmente perdido e distante.

Dois excelentes textos [a bibliografia é enorme; cf. os Companion da Brill e da Cambridge U.P.] que, mais recentemente abordaram o problema e nos quais está baseada minha sinopse (bastante genérica) são:

CRIELAARD, Jan Paul (2002) "Past or present? Epic poetry, aristocratic self-representation, and the concept of time in the eigth and seventh centuries BC". In: MONTANARI, F. (org.) Omero tremila anni dopo. Roma: Edizioni di storia e letteratura.
WEES, Hans van (2006) "From kings to demigods: epic heroes and social change c. 750-600 BC." In: DEGER-JALKTZY, Sigrid; LEMOS, Irene S. (org.) Ancient Greece: From the Mycenaean Palaces to the Age of Homer. Edinburgh Leventis Studies 3. Edinburgh: Edinburgh University Press.

Os poemas certamente refletem períodos históricos distintos, mas isso não quer dizer que Homero seja um historiador ruim. Por um lado, parece ser um objetivo do gênero o engrandecimento do passado, portanto, da Idade do Bronze (tardia); todavia, a arqueologia permite estabelecer vários paralelos entre o modo de vida da elite nos sécs. VIII-VII e o das personagens homéricas, atestados, por ex., em práticas funerários.

Para o arqueólogo Crielaard (p. 284), através de diversas táticas operadas pela elite e pelo modo como são construídos os poemas, "a elite criou um mundo 'supracotidiano' e uma ordem atemporal que transcendia as diferenças entre passado e presente".

Em Homero, "a concepção cíclica do temoo fornece ao mundo heróico uma estrutura atemporal; como resultado, os ventos do passado dão destaque para as ações do presente" (p. 278). Nos séculos VIII e VII, "foi importante para a elite criar uma autoimagem de uma vida num presente perpétuo. É essa concepção de tempo cíclico, que permite que as virtudes sejam regeneradas em cada geração, que torna difícil defender-se que os poemas épicos homéricos recriem uma época perdida, heroica" (p. 282).
O historiador van Wees dá um passo além e contextualiza essa idealização na vida religiosa arcaica, em especial, no culto aos heróis, através do que ele defende que há sim um corte entre o mundo dos poemas e o mundo do público.

Para ele, Homero e Hesíodo pensavam no passado como um época na qual o mundo era habitado por uma raça semi-divina. "Semideuses" seria uma categoria entre mortais e deuses, sendo que toda uma raça compartilharia desse status. O termo aparece em Hesíodo e Homero (sempre no plural), e é o mesmo status daqueles que, em Homero, são chamados de hêrôes, termo que, portanto, para van Wees, ao contrário da maioria dos críticos, não tem um sentido secular.

Assim, "Homero e Hesíodo simplesmente usam hêrôs no seu sentido religioso normal porque eles falam de uma época na qual todos os homens vivos eram hêrôs e semideuses" (p. 370). Para o historiador, porém, Homero, que sabia do poder post-mortem do herói [crença largamente documentada nos séculos VI e V], tinha motivos para sonegá-lo.

A resposta de van Wees para o problema é que, como o mundo dos heróis é uma idealização da plateia histórica, aristocrática, o máximo que um herói épico poderia almejar seria a fama, ou seja, algo que estaria ao alcance desses mesmos aristocratas de carne e osso, como atestado no poema de Calino 1 W. Bela propaganda ideológica afirmar-se que nem mesmo os filhos de deuses poderiam almejar algo maior que fama.

Acerca dos problemas esboçados acima, cf., em português, por ex., SARIAN, Haiganuch (1996/97) "Culto heróico, cerimônias fúnebres e a origem dos Jogos Olímpicos". Classica 9/10: 45-60

Lírica grega: traduções em português

A lista abaixo está longe de se pretender exaustiva. São sobretudo livros publicados no Brasil e disponíveis nas bibliotecas da USP. Sempre que não se indicar o título, refere-se a artigo(s) em periódico ou obra coletiva (favor consultar o currículo Lattes do autor). Agradeço se me ajudarem a aumentar a lista.

LOURENÇO, Frederico (2006) Poesia grega: de Álcman a Teócrito. Lisboa: Cotovia [Álcman, Semônides, Mimnermo, Safo, Íbico, Anacreonte, Teógnis, Baquílides, Píndaro, Teócrito]
MALHADAS, D.; MOURA NEVES, M. H. (1976) Antologia dos poetas gregos de Homero a Píndaro. Araraquara
MARTINS, P. (or.g) Antologia IEC [on-line]
PEREIRA, Maria H. da R. (1990) Hélade: antologia da cultura grega. Coimbra: Instituto de estudos clássicos
PESSANHA, Nely M.
SOUZA, José Cavalcante de. Remate de Males 4

JAMBO, ELEGIA, EPIGRAMA

ASSUNÇÃO, T. Rennó; BRANDÃO, J. Lins (1983-1984) "Semônides de Amorgos e Mimnermo (fragmentos)". Ensaios de literatura e filologia 4: 209-235
ASSUNÇÃO, T. Rennó [elegia: artigos e dissertação A morte nas elegias de Arquíloco, Calino e Mimnermo]
BARROS, Gilda Naécia Maciel de Barros (1999) Sólon de Atenas: a cidadania antiga. São Paulo: Humanitas
BROSE, R. de [epigramas frag. elegíacos de Simônides e "Simônides"]
CORREA, Paula da C. (2009) Armas e varões: a guerra na lírica de Arquíloco. 2a ed. São Paulo: Edunesp
CORREA, Paula da C. (2010) Um bestiário arcaico: fábulas e imagens de animais na poesia de Arquíloco. Campinas: Edunicamp
FALCO, Vittorio de; COIMBRA, A. F. (1941) Os elegíacos gregos. São Paulo
LOPES, D. Rossi N. (2003) Xenófanes de Cólofon: Fragmentos. São Paulo: Olavobras
RAGUSA, Giuliana [elegias: no prelo]

LÍRICA

FONTES, Joaquim B. (2003) Safo de Lesbos: poemas e fragmentos. São Paulo: Iluminuras
MACEDO, José Marcos (2010) A palavra ofertada: um estudo retórico dos hinos gregos e indianos. Campinas: Edunicamp
RAGUSA, Giuliana (2005) Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Edunicamp [da mesma autora, artigos sobre outros frag. de Safo]
RAGUSA, Giuliana (2010) Lira, mito e erotismo: Afrodite na poesia mélica grega arcaica. Campinas: Edunicamp [Estesícoro; Alceu; Íbico, Anacreonte, Álcman]
TORRANO, J. A. A. (2009) Safo de Lesbos - Três Poemas. Rio de Janeiro: Ibis Libris
MALHADAS, D. (1976) Píndaro: odes aos príncipes da Sicília. Araraquara

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Heróis, semi-deuses: Hesíodo e Homero

Assim ele, o bravo filho de Menoitio, na cabana
tratava o ferido Eurípilo; e os outros lutavam,
argivos e troianos, num denso grupo. Não iria
mais contê-los o fosso dos dânos e a muralha em cima,
larga, que fizeram para as naus, e em torno fosso                 5
formaram – não deram aos deuses hecatombes gloriosas –,
para ela suas naus velozes e numeroso butim
dentro proteger: foi feita malgrado os deuses
imortais; por isso não muito tempo firme ficou.
Enquanto Heitor vivo estava, Aquiles, encolerizado,            10
e a cidade do senhor Príamo inexpugnável era,
também a grande muralha dos aqueus firme ficou.
Mas após perecerem todos os melhores troianos
e muitos argivos – uns, subjugados, outros, restaram –,
ter sido pilhada a cidade de Príamo no décimo ano,             15
e os argivos nas naus, rumado à cara pátria,
então conceberam Poseidon e Apolo
aniquilar a muralha conduzindo o ímpeto dos rios.
Tantos quantos das encostas do Ida fluem ao mar,
Resos, Heptáporos, Káresos e Ródios,                                 20
Grênikos, Áisepos e o divino Scamandros,
e Simoeis, onde muitas adargas e elmos
caíram no pó, e a linhagem de varões semidivinos:
a boca de todos ao mesmo lugar dirigiu Febo Apolo.
Nove dias contra o muro lançou a corrente; e chovia Zeus, 25
incessante, para mais rápido por a muralha à deriva.
O próprio agita-a-terra, com o tridente nas mãos,
ia na frente, e com ondas removeu o fundamento
de troncos e pedras, que aqueus, com esforço, puseram,
e aplainou ao lado do caudaloso Helesponto.                     30
De novo a grande costa com areia cobriu,
a muralha tendo aniquilado; aos rios redirecionou
ao seu curso, lá onde antes a água bem corrente fluía.
[Ilíada 12, 1-33]

A cólera canta, deusa, do Pelida Aquiles,
a nefasta, que aos aqueus milhares de aflições impôs,
muitas almas altivas para Hades remessou,
de heróis, e deles mesmos fez presas para cães,
para aves, banquete (e completava-se o desígnio de Zeus),   5
sim, desde que, primeiro, brigaram e romperam
o Atrida, senhor de varões, e o divino Aquiles.
[Ilíada 1, 1-7]

Mas após também a essa linhagem a terra encobrir,
uma outra ainda, a quarta, sobre a terra nutre-muitos
Zeus Cronida produziu, mais justa e marcial,
divina linhagem de varões heróis, os chamados
semideuses, a linhagem anterior sobre a terra sem fim.            160
E a esses a guerra danosa e o prélio terrível,
a uns sob Tebas sete-portões, na terra cadmeia,
destruiu, ao combaterem pelos rebanhos de Édipo,
a outros, nas naus, sobre o grande abismo do mar,
levando a Troia por conta de Helena bela-coma.                    165
Nisso, a alguns, o termo, a morte encobriu,
e, a outros, longe dos homens, ofertou sustento e morada
Zeus Cronida, o pai, e fez habitar nos limites da terra.            168
E eles habitam com ânimo sereno                                           170
nas ilhas dos venturosos junto a Oceano fundo-redemunho,
heróis afortunados, aos quais delicioso fruto,
que três vezes ao ano flori, traz a gleba dá-trigo.
[Hesíodo, Trabalho e dias, 156-73]

Num próximo post, pretendo apresentar o problema que o uso de "semideuses" cria para o estudioso da religião grega no que diz respeito aos poemas.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lírica grega: aula A (Budelmann 2)

Estudos sobre lírica grega

Gêneros e categorias

Já na antiguidade, buscou-se distinguir gêneros e subgêneros para se entender a forma e o propósito de um determinado grupo de cantos. Muitos dos termos estão presentes nos próprios poemas, mas as primeiras tentativas teóricas de definição e classificação são bem posteriores. Uma outra ferramenta para se distribuir os poemas em grandes grupos são as seguintes dicotomias, que têm suas limitações e devem ser usadas com cuidado, de preferência sendo pensadas como escalas, onde um poema particular, em uma ocasião particular, poderia estar mais perto de um polo que de outro:

Performance solo x coral (canto coral x monódia): muitas vezes, não sabemos mais como era a performance. Muitos poetas parecem ter escrito para os dois modos. O modo também poderia variar nas reperformances [=todas as performances do canto com exceção da primeira] do canto.

Público x privado: desde grandes festivais organizados por uma polis até apresentações fechadas para um público pequeno. Aqui também a reperformance nos alerta a pensar até que ponto um poema teria sido composto estritamente para um ou outro tipo de público. Além disso, o sentido de privado para os gregos não tem o mesmo sentido que para nós. Um simpósio, por exemplo, o mais importante local de performance no polo privado da escala, era uma ocasião em que se poderia discutir importantes assuntos públicos. Casamentos e funerais, onde o canto também se fazia presente, tinham igualmente um forte caráter público.

Elite x não-elite: os cantos refletem a estratificação social e as tendências de mudança, embora nunca simplesmente descrevam realidades sociais. [Para uma utilização forte dessa polaridade, cf. Kurke 2007 na bibl.]

Cantado x falado: de forma bem geral, pode-se separar a lírica cantada (=mélica) da poesia falada [ou recitada] (elegia, jambo e épica) [assim como, de forma bem geral, tragédias e comédias têm partes faladas por personagens e cantadas pelo coro]. O metro (bastante regular nos jambos e elegias; bastante diferenciado na mélica) confirma essa divisão, e o fato de nunca os poetas elegíacos e jâmbicos usarem "melos" em referência a seus poemas. A mélica era normalmente acompanhada de instrumentos de corda (lira) tocados pelos próprios cantores, enquanto que as elegias (quase nada se sabe sobre o jambo) devem ter sido geralmente acompanhadas por um tocador de aulos (~oboé moderno). Tudo isso, porém, é bastante esquemático: a presença do aulos, por exemplo, mostra que a performance da elegia também era altamente musical. O próprio aulos parece ter sido usado também na mélica (e nas partes corais no teatro).

Reconstrução 1: textos

Trabalhar com poesia lírica é ser obrigado a enfrentar uma série de brechas, maiores ou menores, e tentar preenchê-las: textos fragmentários, tamanho do poema, autor e gênero desconhecidos são os problemas centrais. Em grande parte, trabalha-se com textos reconstruídos. Para o trabalho de reconstrução, estudos de recepção na antiguidade são fundamentais (filologia alexandrina; autores que citam trechos líricos).

Reconstrução 2: contextos

Reconstruir o contexto dos poemas é igualmente difícil, tanto mais importante porque a maioria dos cantos foi composta para ocasiões específicas.

Para Bruno Snell, o contexto principal teria sido o da "descoberta do espírito" na Grécia antiga, evidenciado pela presença maciça do "eu" nos poemas (ao contrário do que ocorreria na épica) [para uma apresentação e discussão crítica da teoria, além do texto de Ragusa citado há dois posts atrás, cf. a primeira parte do livro de Corrêa, Armas e varões].

Trabalhos mais recentes mostram, ao contrário, a intensa influência recíproca entre a épica [a maior parte dos estudiosos datam a forma (quase) final da Ilíada e da Odisseia, ou seja, uma forma bastante próxima daquela que hoje conhecemos, entre os séculos VIII e VI] e a lírica (que já deve ter tido gêneros desenvolvidos bem antes dos primeiros poemas que conhecemos do séc. VII).

Outra importante objeção à teoria de Snell é que ela não leva em conta as condições de performance, o coração dos estudos sobre lírica pelo menos desde os anos 1980. A lírica grega passou a ser vista como parte do que se chama de "song culture" (cultura musical ou cultura do canto), uma cultura onde um canto concentra vários aspectos (sociais, religiosos, políticos, existenciais etc.) da vida. "Todo mundo canta, e o canto é um meio de expressar coisas que importam, além de ser um modo de entretenimento" (p. 15).

O foco nos estudos de lírica deixou de ser o autor, e passou a ser o performer e o público; não mais uma lírica da individualidade e auto-expressão subjetiva, mas uma lírica que tem uma função nas vidas das comunidades arcaicas e clássicas.
[continuação do resumo do texto de Budelmann iniciado no penúltimo post]

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Fiel e tenaz Penélope

As servas malignas como um sucedâneo de uma Penélope adúltera

Não deixa de ser algo instigante a tese de Laurel Fulkerson (CJ 97, 2002; retomada por Alexander Loney em sua bela tese de 2010, apresentada no Departamento de Clássicas da Duke, sobre a 'tísis' na Odisseia) de que as servas de Penélope funcionam como o "lado negro" da sua senhora, ou seja, assinalam uma possibilidade particular – o adultério de Penélope – e uma generalidade – a malignidade feminina - que, no poema, exalariam Clitemnestra, Helena e Afrodite (a princípio, prefiro não colocar todas elas nesse mesmo saco estreitamente rotulado).

Como leitor do séc. xx-xxi, nunca me passa pela cabeça que Penélope pudesse "trair" Odisseu, assim como não consigo imaginar Odisseu fracassando ou desistindo de voltar para Ítaca. Desde o início, graças ao narrador e aos deuses, eu sei que ele vai conseguir.

Do mesmo modo, desde o início eu tenho certeza que a astuta e, sobretudo, fiel e tenaz ("resilient", a palavra que mais gostei de A origem, um filme amado pelo meu amigo Robert de Brose) Penélope não vai querer desposar um daqueles pretensiosos e insuportáveis jovens.

Lírica grega: aula A (Budelmann 1)

Como não darei a 1a aula por motivos médicos, peço que leiam atentamente o programa e o cronograma. Qualquer dúvida pode ser manifestada por esse blog ou na "primeira" aula efetiva dia 2 de março. Vejam no programa as traduções que serão usadas; quase todas estão disponíveis no xerox da Da. Lúcia (as restantes deixarei lá no dia 21).

A 1a aula seria introdutória, mas, como todos cursaram IEC-1, onde devem ter tido uma introdução à poesia lírica, sugiro, no lugar dessa primeira aula, três leituras. Um delas é "A lírica grega e Safo", sobretudo a 1a parte, capítulo 1 do livro de Giuliana Ragusa Fragmentos de uma deusa [esse cap. também será útil para a discussão de Safo].

Além disso, nesse post e no próximo, farei um resumo parcial de outros dois textos bastante eficientes como introduções, ambos do livro The Cambridge Companion to Greek Lyric, editado por Felix Budelmann (Cambridge, 2009). O primeiro texto, "Introduzindo a lírica grega", é do próprio editor [utilizo colchetes para marcar meus comentários].

A lírica grega e seus desafios:

O sentido e a história de "lírico": num sentido estrito, o termo exclui o jambo e a elegia; num sentido amplo, não. Lyrikos refere-se à lira e só aparece no séc. II a.C. em referência a uma categoria específica de poesia/poetas. Antes disso, o termo mais importante era melos ("canção, tom"), que às vezes é oposto a épica e tragédia (Platão). Tanto na antiguidade latina quanto grega, "mélico" e "lírico" somente eram usados em um sentido estrito. O sentido amplo aparece no início do séc. XVIII e é consagrado por Goethe e suas "formas naturais de poesia" [sobre Goethe e o romantismo na definição dos 3 gêneros, cf. Calame na bibl.].
 
Um corpus variado e mal definido: [como ficará claro ao longo do semestre,] os textos sob a rubrica "lírica" são muito variados entre si. Uma narrativa (com ou sem discurso em 1a pessoa) ou a perspectiva de uma 1a pessoa podem ser mais ou menos preponderantes. A variação se dá em quase todos os aspectos: assunto, propósito, tamanho, metro, dialeto, tom, geografia, período, número e tipo de performer(s), modo de performance, acompanhamento musical, público, lugar da apresentação (santuários, ruas, espaço de convivência, casas etc.).

Não é sempre óbvio o que não é lírica (por ex., os poemas pré-socráticos). Exatamente por conta dessa variedade, muitos abandonam qualquer utilização da noção moderna de "lírica" ao discutir a lírica grega e adotam exclusivamente conceitos antigos. [É o que, em boa medida, faremos no curso, onde nos será mais importante a tripartiação jambo-elegia-melos (e os subgêneros do melos].

[Nas letras clássicas no Brasil, parece haver uma preferência por poesia mélica em referência ao sentido estrito e "lírica" (às vezes assim mesmo, com aspas), para o sentido amplo. Pessoalmente, acho um excesso de zelo as aspas quando o contexto deixar claro o sentido do termo. O importante é ter em vista que o sentido do termo "lírico" e os textos aos quais se referem são condicionados historicamente; no que diz respeito à literatura grega, a discussão em Platão, Aristóteles e na filologia alexandrina é particularmente importante.]

[Importante notar que a poesia lírica grega não acaba no séc. V. Por questões de tempo, não serão discutidos autores e poemas posteriores a Píndaro e Baquílides.]

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Épica grega: aula A (introdução)

Como o propósito da primeira aula é uma apresentação do curso mas eu, por questões médicas, não poderei estar presente, resumo-a aqui. Dúvidas podem ser respondidas através do blog ou a partir da aula seguinte. Peço que todos leiam o programa, disponível no xerox da Da. Lúcia.

O mais importante é que já na aula seguinte, ou seja, dia 2 de março, iniciará a discussão do texto (o cronograma, portanto, pelo menos por enquanto, não será alterado). Confiram o cronograma e as traduções recomendadas da Odisseia, o poema que será lido ao longo do semestre. Na 1a aula, serão discutidos os cantos 1 e 2; vejam que no cronograma há sempre referência a uma ou mais passagens de cada canto em torno das quais a discussão se estenderá um pouco mais. Será levado em conta que o canto 1 já terá sido visto por todos em IEC-1.

O curso não será uma introdução ab ovo do gênero épico, algo já feito em IEC. O objetivo da aula introdutória seria fazer um brevíssimo resumo das possíveis condições de composição, performance e transmissão dos poemas, algo que passo a fazer aqui.

De certa forma, o contexto dos poemas homéricos é aquele sobre o qual menos sabemos entre os gêneros poéticos gregos nos períodos arcaico e clássico. Paradoxalmente, temos dois longuíssimos poemas completos [à guisa de comparação: no que diz respeito à tragédia, só temos o texto de uma trilogia, a Oresteia, da qual, porém, nos falta o drama satírico, a quarta peça que compunha a tetralogia apresentada ao longo de uma manhã.] mas quase nada sabemos sobre suas condições de composição, performance e transmissão. Sabemos muito mais sobre o gênero dramático, ligado à Atenas do século V.

Hipóteses com fundamentação histórica sobre datação, público e condições socio-políticas da primeira composição dos poemas monumentais, é claro, existem; uma das mais ambiciosas das últimas décadas é a de Douglas Frame apresentada no longuíssimo livro Hippota Nestor, de 2009, do qual há uma resenha em http://bmcr.brynmawr.edu/2010/2010-12-04.html.

Todavia, é necessário nunca perder de vista que reconstruções como as de Frame ou a de Martin L. West [feita em vários e importantes textos e, em parte, apresentada resumidamente em "Homero: a transição da oralidade à escrita", em Letras Clássicas 5: 11-28] são, em boa medida, ficções, ou, no mínimo, hipóteses impossíveis de serem comprovadas empiricamente e dependentes de uma interpretação que um outro intérprete, por sua vez, pode interpretar de modo distinto [cf. o post sobre Foley e Scodel]. Basicamente, o que West (e outros) defendem é que a suposta fixidez dos poemas ao longo dos séculos VII-VI (no caso da hipótese de West, os poemas teria sido compostos na 2a metade do séc. VII; muitos datam os poemas no séc. VIII e outros, em minoria, nos séculos IX ou VI) comprova a escrita por parte de um cantor excepcional que quis preservar seu trabalho para o futuro.

Essa teoria Greg Nagy chama, assaz pejorativamente, de modelo do "big bang". O helenista de Harvard, por sua vez, defende um modelo menos popular entre os homeristas que o de West e esmiuçado, por exemplo, em Homeric questions. O autor defende que a fixidez foi resultado de um longo processo, marcado por diferentes etapas, que se estendeu do século XII ao século II, onde cada etapa se distingue da anterior por um grau crescente de fixidez. Essa fixidez relativa manifestou-se em cada ocasião de performance de poemas que resultaram na Ilíada e na Odisseia tal como as conhecemos hoje, ou seja, tal como foram transmitidas em manuscritos da Idade Média.

Por outro lado, há uma séries de métodos de interpretação dos poemas que prescindem de uma discussão de seus elementos contextuais. O primeiro, por assim dizer, foi o de Aristóteles na Poética. Um modelo de análise interna dos poemas também permeou a atividade dos "filólogos" da biblioteca de Alexandria e seus sucessores na antiguidade, podendo ser resumida no axioma de Aristarco "esclarecer Homero a partir de Homero". Hoje em dia, a escola que, em boa medida, continua essa tradição é a narratologia desenvolvida por Genette e Bal e aplicada em Homero sobretudo pela holandesa Irene de Jong e em trabalhos americanos que se seguiram aos dela (sobre crítica antiga, cf. o post sobre Nünlist).

Outra abordagem que prescinde de um modelo que dê conta de particularidades históricas acerca do modo de composição dos poemas e que tem sido desenvolvida, em várias vertentes, sobretudo a partir dos anos 1980 é o resultado de novos desdobramentos da teoria oral de composição dos poemas homéricos proposta por Milman Parry no final dos anos 1920 e início dos 30 e desenvolvida por seus seguidores, especialmente Albert B. Lord, nas décadas seguintes.

O principal nome é John M. Foley, mas também bastante influentes são os trabalhos de Richard Martin e de Egbert Bakker. Todos têm em comum uma abordagem que prioriza a situação de performance, ou seja,  as consequências, sobretudo, linguísticas e etnológicas, de um modelo de comunicação centrado na interação entre um performer – o aedo ou rapsodo – e seu público.

É essa a abordagem principal que norteará a leitura da Odisseia que vou propor, um poema onde de forma muito mais aguda que na Ilíada, o narrador para de falar e coloca o discurso na boca de suas personagens, tornados performers de discursos, culminando na longa história que Odisseu conta aos feácios do canto 9 ao 12 e nas várias mentiras que Odisseu, disfarçado de mendigo cretense, conta em Ítaca entre os cantos 13 e 19. A Odisseia é uma narrativa composta por uma sucessão de narrativas apresentadas por diferentes performers.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Píndaro: tradução da "Olímpica" 3

Olímpica 3

Que aos hospitaleiros Tindaridas agrade                                               estr. 1
     e à Helena de bela coma,
isso rezo, a gloriosa Ákragas honrando,
ao erguer hino a Téron pela olímpica
     vitória, suprassumo vindo de cavalos
com pés infatigáveis. Por isso a Musa, sim, junto a
     mim esteve ao achar um modo lustre-novo
de na dórica sandália encaixar a voz                                   5

com cortejo radiante, pois coroas, às                                                    antistr. 1
     madeixas tendo sido jungidas,
exigem de mim esta dívida de base divina,
lira de tom variegado,
     ressoo de aulos e a colocação de palavras
misturar com adequação para os filhos de Ainesidamo–
     e Pisa, que eu brade. Vindos dela,
cantos repartidos pelos deuses dirigem-se aos homens,     10

para todo que, realizando as ordens primevas de Héracles,                      ep. 1
o rigoroso árbitro olímpico, varão
     etólio, sobre suas pálpebras,
em torno da cabeleira, põe
     o adorno acinzentado de oliveira, que um dia
das umbrosas fontes
     do Ister trouxe o filho de Anfitríon –
a mais bela lembrança dos jogos em Olímpia –                  15

após persuadir o povo dos Hiperbóreos,                                                 estr. 2
     assistentes de Apolo, com um discurso:
com ideia honesta, pedia para o bosque recebe-todos
de Zeus a planta umbrosa,
     comum aos homens, e a coroa pelos êxitos.
Pois já ao pai tinha sido o altar consagrado,
     a lua carro-dourado, meio do mês,
de novo acendera-lhe o olho inteiro da noite,                     20

e a sacra disputa dos grandes jogos                                                         antistr. 2
     junto ao festejo quadrienal
instaurara nas ribas numinosas do Alfeu;
mas não com boas árvores florescia
     a terra de Pélops nas ravinas do Krônio.
Privado delas, pareceu-lhe nu o jardim,
     exposto aos agudos raios do sol.
Assim, então, o ânimo instigou-o a ir à terra                      25

ístria; lá a filha guia-cavalo de Leto                                                           ep. 2
recebera-o vindo dos cumes da Arcádia
     e das sinuosas ravinas,
quando por conta da incumbência
     de Euristeu a coação do pai o forçou
a conduzir a corça de corno doirado,
     fêmea, que um dia Taygeta
estampou, oferenda sagrada para Ortosia.                         30

Seguindo-a, vira também aquela terra                                                        estr. 3
     para além das rajadas do gélido
Bóreas; lá pasmou-se com as árvores e parou.
Por essas tomou-o doce desejo,
     na extremidade doze-voltas
do hipódromo plantá-las. Também agora a essa festa
     dirige-se, propício, com os excelsos
gêmeos, os filhos de Leda cintura-baixa.                            35

A eles incumbiu, ao ir para o Olimpo,                                                         antístr. 3
     de cuidar da admirável competição
envolvendo o êxito dos homens e a condução
de carros velozes. Portanto a mim, talvez,
     o ânimo impele a dizer que aos Emenidas –
a Téron, sobremodo – veio a glória dada pelos bons
     cavaleiros Tindaridas, pois, entre os mortais,
a eles vão com as mesas mais plenas de cortesias,             40

com espírito piedoso guardando as cerimônias dos venturosos.                  ep. 3
Se a água excele, e dos bens
     o ouro é o mais respeitado,
então agora, o extremo
     alcançando com os sucessos, Téron toca,
de casa, as colunas
     de Héracles. O depois não é para os pés de sábios
nem de não sábios. Não o perseguirei; eu seria vazio.        45
(tradução de Christian Werner)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Primeira aula do semestre

O semestre ainda nem começou e já há um primeiro problema: não poderei ministrar a primeira aula por problemas de saúde, pois terei que me submeter a uma pequena cirurgia. A aula seguinte, porém, fica mantida.

Com isso, terei que fazer um pequeno reajuste no cronograma. Uma das aulas de lírica cairá fora e uma das aulas de épica será absorvida pela aula anterior ou posterior.

Espero todos na primeira aula (de fato), pois é uma aula fundamental, onde as diretrizes para o semestre serão apresentadas.

Aos interessados, convido para uma defesa de mestrado (Júlio Figueiredo, sobre Isócrates e a tradição poética do louvor e do conselho) e uma defesa de doutorado, sobre os epitalâmios helenisticos e latinos (Erika Werner), respectivamente dias 21 e 25, no prédio da Administração da FFLCH.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O jovem Odisseu em busca de veneno

Abaixo, o início de um artigo meu, de 2010, que está on-line: 

"A deusa compõe um ‘mito’: o jovem Odisseu em busca de veneno (Odisseia I, 255-68)". Nuntius Antiquus 6: 7-27

Através de um longo discurso no início da Odisseia (Od. 1, 253-305), Atena, disfarçada do táfio Mentes, finalmente consegue fazer Telêmaco deixar de lado sua inércia e ceticismo, gerados pela ausência do pai, e passar a agir – de forma intermitente e nem sempre muito decidida, é verdade – como dono de sua propriedade e legítimo representante de sua gloriosa linhagem.

Fundamental como elemento persuasivo e motivador é a história através da qual Atena/Mentes conta como Odisseu, em um passado distante, conseguiu obter veneno para suas flechas – combinação singular nos poemas homéricos – de seu pai:

Ah! Se de volta à casa, nas portas da frente,
estivesse com elmo, escudo e duas lanças,
tal como eu pela primeira vez o mirei,
em nossa casa bebendo e deleitando-se,
voltando de Éfira, de junto de Ilo, filho de Mermero,
pois foi também até lá sobre nau veloz, Odisseu,
em busca de poção homicida para com ela
untar flechas ponta-brônzea. Mas aquele não lha
deu, pois temia indignar os deuses sempre vivos;
mas meu pai lha deu, pois o amava por demais.
Assim encontrasse os pretendentes Odisseu;
todos seriam destino-veloz e bodas-amargas. (Od. 1, 255-66)

Vários críticos, de forma mais ou menos escandalizada, rejeitaram essa história como imprópria do herói homérico, vale dizer, épico. A representação de Odisseu conteria resquícios da figura de um "arquitrickster", herança autólica que o(s) autor(es) da Ilíada e da Odisseia teria(m) sido maximamente zeloso(s) em purgar, ou então que o autor da Odisseia usaria para criar um chiaroscuro que destacaria o problema moral da vingança de Odisseu ou a oposição entre dois modos de pensamento ou ação, só um deles épico-heroico.

Embora alguns críticos reconheçam que a história prefigure, de forma mais ou menos enfática, a vingança contra os pretendentes (função extradiegética) e, além disso, contenha um modelo de ação para Telêmaco, mais particularmente, a sugestão de que só através de um ardil poder-se-ia vencer um bando tão numeroso (função intradiegética), mesmo esses críticos comumente colocam um suposto problema moral no centro da história.

Assim, o que farei aqui é colocar em questão a moralização dessa história através (1) da discussão do tipo de discurso que ela implica e (2) e (3) da análise dos temas épicos que ela pressupõe.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Programa, bibliografia, traduções

Já está disponível no xerox da Letras o seguinte material das disciplinas que ministrarei neste semestre:

- lírica: programa (com bibliografia e programa) e traduções (importante: não são as traduções de todos os poemas e fragmentos a serem lidos; cf. programa);

- épica: programa (com bibliografia e programa) e bibliografia complementar.

Também enviei o programa para a secretaria do DLCV mas não sei se e quando vão publicar.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Link: abreviações de períodicos

No blog e em aula, costumo usar as abreviações de periódicos adotadas pelo L'Annee Philologique:

http://www.annee-philologique.com/aph/files/sigles_fr.pdf

As aporias do fragmento Arquíloco 23 W

As duas opções principais de cenário para o fragmento 23 West são o erótico ou o histórico-político.

No primeiro caso, trata-se de um momento da conquista amorosa semelhante ao de 196a W; a dúvida é se um homem está falando do início ao fim (um homem revelando-se uma cidade conquistada para uma mulher seria algo estranho para um grego) ou se uma mulher toma a palavra a partir do verso 17 e diz para o homem gozar sua conquista.

A outra possibilidade é que se trata do diálogo entre Giges e a esposa de Candaules (cf. Heródoto 1) no dia posterior ao episódio em aquele a viu nua. Toda a fala seria de Giges, pisando em ovos para não ser morto pelos seguranças da poderosa rainha. Essa é a hipótese (eu achei genial) de Clay; não encontrei ninguém que a comenta.

Trabalhar com fragmentos não é fácil. Na minha tradução, não indiquei que vários termos que traduzi não são totalmente legíveis no papiro, como por exemplo, ‘formiga’.

Os textos que consultei foram:
WEST, M. (1974) Studies in Greek Elegy and Iambus. Berlin; New York
BOWIE, Ewen (2001) "Early Greek iambic poetry: the importance of narrative". In: CAVARZERE, Alberto; ALONI, Antonio; BARCHIESI, Alessandro (org.) Iambic Ideas: Essays on a Poetic Tradition from Archaic Greece to the Late Roman Empire. Lanham: Rowman & Littlefield
HANDLEY, Eric (2007) "Night thoughts (Archilochus 23 and 196a West". In: FINGLAS, P. J.; COLLARD, C.; RICHARDSON, N. J. (2007) Hesperos:studies in ancient Greek poetry presented to M. L. West on his seventieth Birthday. Oxford: Oxford University Press
CLAY, J. S. (1986) "Archilochus and Gyges. An interpretation of Fr. 23 West". QUCC 24: 7-17

Arquíloco para o fim de semana

.................................................respondi:
Senhora, não te amedrontes com essa vil
calúnia dos homens: durante a noite –
isso me ocupará – torne teu ânimo propício.          10
Realmente crês que um tal nível de miséria
alcanço? Devo-te parecer um pobre coitado,
não como sou nem como os de quem descendo.
Sei gostar de quem gosta de mim
e odiar quem me odeia e vil...                               15
formiga. Junto a esse discurso está a verdade.
Essa cidade (...) a qual te diriges,
nunca homens a saquearam, e tu
agora com a lança a tomaste e grande glória adquiriste.
A ela governa, o reinado seja teu;                          20
para muitos homens isso será digno de inveja.

Esse fragmento jâmbico (é o 23 West) de um papiro contendo outros trechos "carnudos" de Arquíloco parece mostrar a tentativa do eu lírico de convencer sua interlocutora de que ela está equivocada em recusar sua proposta (de matrimônio).

Isso seria inquestionável não fossem os versos 17-21, que podem (opinião da maioria) ou não ser uma metáfora (cf. Jenny S. Clay em artigo de 1986). 

Ainda não vi o novo livro da Paula da Cunha Corrêa, e talvez ela tenha incluído o fragmento em alguma discussão (formigas? fragmento 196?). Há um paper do Ewen Bowie sobre ele apresentado em 2005, mas não sei se já foi publicado.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Homero: entrando no clima

Dois excelentes livros que abrem o texto homérico com um etnografia de diferentes literaturas orais sem deslocar o texto em si para a periferia são:

Ruth SCODEL (2002) Listening to Homer

John M. FOLEY (2002) How to read an oral poem.

É bem verdade que no livro do Foley Homero não ocupa a posição central. Assim, para o estudante de Homero que estiver com menos tempo, o livro do Foley (um autor certamente indispensável) de 1999 talvez seja mais apropriado para um primeiro (Homer's traditional Art).

Nenhum desses livros é exatamente um manual introdutório, mas nenhum deles exige um grande conhecimento da bibliografia homérica, embora o livro da Scodel renda mais para aqueles que já conhecem essa bibliografia minimamente.

Foley, um dos legítimos herdeiros dos oralistas da primeira geração americana, começou a produzir nos anos 1980 e no início da década seguinte já tinha publicado as principais categorias que definem sua metodologia. Assim, os livros de 1999 e 2002 são o coroamento de um percurso.

Quanto à Scodel, o que ela se propõe é examinar criticamente uma série de pressupostos adotados por trabalhos de oralistas nas décadas de 80 e 90, especialmente aqueles centrados na performance e, consequentemente, no público (como foi o caso de Foley, mas também de Gregory Nagy, Egbert Bakker e Richard Martin). Desse modo, um dos efeitos desse livro, que felizmente não recai num esteticismo de cepa aristotélica (como Jasper Griffin nos anos 1980 ou agora a alemã Gyburg Radke Ullmann) é nos obrigar a repensar uma série de categorias que vinham sendo adotadas tacita e acriticamente.

Tanto Scodel quanto Foley publicaram versões condensadas de (parte de) seu trabalho alhures, por exemplo, nos companion da Brill (Foley), de Cambridge (Scodel) e da Blackwell (Foley).