No canto 12, o lício Sarpédon, filho de Zeus, instiga seu companheiro para a batalha desse modo:
"Glauco, por que então somos sobremodo honrados (tetimêmestha)
com um assento, carne e cálices cheios
na Lícia, e todos nos veem como deuses?
Dispomos de grande domínio (temenos) nas margens do Xantos,
belo, com pomar e lavoura carregada de trigo.
Por isso agora carece, entre os lícios da vanguarda,
fincar o pé e encarar o combate abrasador,
para que assim falem lícios com sólida armadura:
‘De fato, não sem glória (aklees) chefiam a Lícia
nosso reis, comem gordas ovelhas
e seleto vinho meloso; mas também há força
distinta, pois pelejam entre os lícios da vanguarda.’
Querido, se pudéssemos os dois escapar dessa guerra
e fôssemos para sempre sem velhice e imortais,
eu mesmo não pelejaria entre os da linha de frente
nem te enviaria à peleja gloriosa (kudianeira).
Mas agora, pois as sinas de morte estão sobre nós,
milhares, das quais é impossível mortal fugir ou escapar –
vamos: ou estenderemos triunfo (eukhos) a alguém, ou ele a nós."
Sarpédon faz uma pergunta acerca dos fundamentos da timê, ou seja, dos privilégios materiais dos reis. Trata-se de uma pergunta retórica, ou seja, há uma resposta óbvia para Sarpédon, Glauco e o público dos poemas? O texto não deixa claro. Certamente Sarpédon diz que tal timê tem um preço: a luta na linha de frente. Entretanto, na sequência, ele diz que tal atitude tem uma outra motivação: a de que os lícios falem bem deles, repetindo que os reis possuem kleos.
O texto sugere que há um círculo (vicioso?) entre o status do rei e seus privilégios – o rei come bem porque é rei e é rei porque come bem –, sendo que somente na guerra algo distinto e valoroso é percebido. A sequência de imagens talvez sugira que timê e kleos sejam distintos, já que uma interpretação possível do trecho é que a única razão para participar da guerra é a imortalidade implicada no kleos, com o que fica subentendido, adicionalmente, que, mesmo sem a participação em guerras, as timai do rei permanecem.
Tendo em vista, porém, que não parece haver um valor em si na labuta guerreira, o texto não nos consegue convencer que o kleos seja uma grande compensação pela morte que a todos ronda.
Uma excelente discussão sobre a passagem da Ilíada é o artigo de Teodoro Assunção (2008) "Boa comida em banquetes como razão para arriscar a vida: o discurso de Sarpédon a Glauco (Ilíada XII 310-28)". Nuntius Antiquus 1: 1-17
Pietro Pucci (1997: 56) é o único intérprete que conheço que nota que o texto é estranho: não é estabelecida a conexão lógica precisa entre a timê e a consciência do dever. O texto desvia da timê e evoca os olhares que os lícios dirigem ao rei. A dificuldade nesse ponto é que a questão "por que somos tão honrados..." não é respondida pela sugestão direta que honras régias trazem o dever de lutar, mas a questão é transformada na evocação das expectativas dos lícios, que não esperam que o rei se comporte bravamente em virtude de sua timê, mas devido ao seu kleos, quer dizer, sua imagem heróica régia.
Pucci (p. 57ss.) explora as particularidades sintáticas da passagem e a menção irônica dos banquetes reais para chegar à conclusão de que não podemos precisar o que Sarpédon pensa das suspeitas dos lícios. As premissas da Ilíada, entretanto, sugerem que ele considera um dever fazer com que suas atitudes correspondam à imagem que dele se tem. O que ele sente é aidôs. Sarpédon considera um dever consubstancializar a posteriori o retrato que têm dele os lícios. No final das contas, seu alvo de comportar-se a posteriori como seu retrato prescreve é gratuito. Ele não produz razões. Determinantes são apenas as premissas ideológicas da poesia épica. É a ausência de motivação que marcaria suas ações.
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