O que torna os deuses diferentes das personagens? De que a forma as palavras e atos dos deuses se relacionam com a história? O que eles indicam em termos de crenças e ritos? Em especial, como podemos conjugar aquilo que nos parece a imoralidade dos deuses (e assim também já parecerá para alguns gregos do séc. VI) com uma visão religiosa?
É comum explicar os deuses não explicando nada, ou seja, afirmando que não se trata de religião. Seria um sistema totalmente antropomórfico. Esss intérpretes preferem tratar de conceitos abstratos – moira, aisa, themis,... – ao invés dos olímpicos (por exemplo, não está destinado que Odisseu morra no naufrágio causado pelo temporal de Poseidon).]
De um lado, são deuses universais que protegem alguma ordem moral e cósmica; de outro, divindades amorais que querem apenas satisfazer seus apetites muito humanos. Para outros, aparato divino é mero ornamento, ou então um recurso narrativo que faz avançar a história ou confere proeminência aos heróis; muitas das passagens centradas em deuses funcionariam como interlúdios cômicos.
O narrador também faz os deuses participarem para expressar uma decisão do herói: o poeta não conheceria outro meio. Isso pode até representar uma origem remota dos deuses, mas não explica o que eles fazem nos poemas. É comum um deus aparecer para um mortal – como Atena no sonho de Telêmaco em 15 – com informações que não podem pertencer ao mortal.
A narração flui mesclando ações divinas e humanas, tranquila e uniformemente; ou seja, em primeiro lugar, os deuses são personagens.
Seus epítetos, porém, indicam que se diferenciam, em bloco, dos mortais: imortais; ditosos; habitam o Olimpo. Vivem uma vida prazerosa, de sublime frivolidade: em 8, o adultério entre Ares e Afrodite causa riso (mas não exclusivamente), elemento completamente ausente do adultério de Clitemnestra e da possibilidade em Ítaca. O cômico e o frívolo são consequências da imortalidade, essa qualidade radical que separa as esferas divina e mortal. O que mede o valor da existência humana é aquilo ao qual se atribui uma maior importância do que a própria vida, como a honra.
Os deuses não envelhecem. Os homens, ao contrário, são comparados, por exemplo, com a vegetação, que brota, floresce e fenece. Os deuses, ao contrário, comem néctar e ambrosia, sinais da sua capacidade de não envelhecer. [Cf. os alimentos distintos que Calipso oferece a Hermes e Odisseu; deus e herói sentam no mesmo lugar, diante da ninfa, mas a eles são servidas refeições distintas]
[161: o aiôn de Odisseu está esvaindo enquanto ele permanece junto de Calipso. É um fluido corporal que incorpora o vigor ativo do ser humano e que se esvai (152-60).]Os heróis podem ser mais amados que nós e mais odiados pelos deuses. Razões para o amor dos deuses: ligações familiares; afeição genuína; afinidades eletivas. Entretanto, o deus mais parecido com um herói, com quem ele tem maior afinidade, pode tornar-se seu inimigo. O deus que ama pode se tornar o deus que odeia.
[211ss.: o mesmo vale para a comparação entre Calipso e Penélope; a beleza da segunda não é permanente (além de ser inferior em grau).]
Moira
A moira diz respeito ao conhecimento, que, em Homero, é relativo ao passado (área por excelência das Musas), ao presente (visão) e ao futuro (moira). No que diz respeito ao presente, não há, no universo divino, a onisciência generalizada, pelo menos não na prática. O que há é uma espécie de supervisão.
[282-84: Poseidon (que está no leste – Lídia) vê Odisseu (que está vindo do extremo-oeste). Poseidon não é onisciente: ele só sabe que Odisseu saiu da ilha de Calipso quando o vê.]
Quanto ao futuro, ele costuma parecer meio indeterminado, mesmo quando enunciado por uma divindade. O que é definido é a moira. O termo, na verdade, é razoavelmente prosaico ("porção, parte"). Em relação à vida humana, o termo adquire um sentido especial. A moira de um homem é o que lhe cabe entre o nascimento e a morte, ou seja, algo delimitado no tempo. Amiúde é sinônimo de morte.
[113-15: é a moira (aisa) de Odisseu retornar; idem 41 (Zeus para Hermes).]
Além da morte, outros eventos fundamentais na vida de um homem ou de um povo podem estar determinados; nem todos o são, porém.
Aisa e moira são virtualmente termos sinônimos; a única diferença parece ser a de que aisa é mais medido que dividido.
Os deuses conhecem a moira dos homens; mas conhecê-la não é ter poder para determiná-la ou mudá-la. [286-90-: a ira de Poseidon. Poseidon sabe que o destino de Odisseu é escapar junto aos feácios; mesmo assim, continuará a afligi-lo. Aquilo que para nós parece sadismo divino talvez tenha uma base ritual na qual há um embate entre um homem (herói) e um deus. Poseidon não pode mudar o destino de Odisseu. Isso não quer dizer que haja uma hierarquia moira – deuses.]
Há uma certa contiguidade ou confluência entre o destino de um humano e a vontade ou o plano de Zeus. [30: o firme desígnio, boulê, (de Zeus), qual seja, o retorno de Odisseu. 103: o noos (espírito, ideia) de Zeus, ao qual nenhum deus pode ultrapassar ou frustrar.]
A forma (phusis) dos deuses
Os deuses têm conhecimento da natureza e poder sobre ela, mas raramente intervêm nela.
Deuses são capazes de metamorfoses, mudanças de natureza, explícita na habilidade que possuem de se disfarçar. Proteu é emblemático. Mas os deuses geralmente aparecem na forma de um humano. Esse poder dos deuses não deve ser entendido como parte do aparato divino para conduzir a narração, mas como manifestação de seu conhecimento e domínio da natureza. Os deuses também podem modificar os humanos, como quando despejam kharis (graça; cf. Telêmaco no início do canto 2) sobre eles ou quando Atena metamorfoseia Odisseu em xiii. Os deuses mudam a forma, não a substância.
Em grande parte, a forma dos deuses nos poemas épicos é determinada pela iconografia, ou seja, a contrapartida visual das suas funções.
[44: a iconografia de Hermes (sandálias – para voar; vara – para conduzir os mortos, para adormecer). Esse último não será usado.]
As metamorfoses são mais complexas.
[53: Hermes semelhante a uma gaivota]
Para Bannert (1988), semelhança com a partida do Olimpo e, posteriormente, de Ítaca por parte de Atena. Para esse autor, a aparição de um deus ‘na forma’ de um pássaro é um elemento do poeta para encadear as cenas.]
Que tenha havido teriomorfismo na Grécia, disso não há dúvida. Para Dirlmeier, porém, o deus ou sua ação é semelhante a um pássaro em um determinado ponto, não tendo toda a sua forma. Funcionariam como símiles, ou seja, haveria um único ponto de contato (por ex., desaparecer rapidamente como o pássaro que alça vôo e logo não se encontra mais no campo de visão de quem o observa). Para outros autores há metamorfose. Para Bannert (1988: 56ss.), através dela verifica-se a presença do numinoso. Para Buxton (2004: 143), por fim, às vezes há metamorfose, outras, comparação, outras, indeterminação. Como um dos atributos das divindades gregas é o mistério, por que não fazer uso dele desse modo?
A ira e o ódio dos deuses
Cf. Zeus na Ilíada 1, 414-15: "Não me provoque, mulher, para que eu, encolerizada não te abandone, de sorte que te odiarei tanto quanto agora te amo."
[108: a versão do retorno de Odisseu feita por Hermes: aqueus ofenderam Atena; todos morreram e Odisseu chegou a Ogígia. Curiosamente não é a versão da Odisséia o que Hermes apresenta.
116ss.: Calipso apresenta a sua versão para os motivos dos deuses: ciúmes. Também apresenta a sua versão da história, a ‘correta’, a versão da Odisséia: Zeus destruiu a nau e Calipso salvou Odisseu.
146: Calipso deve evitar a mênis (cólera) de Zeus
284ss.: a ira de Poseidon. Poseidon sabe que o destino de Odisseu é escapar junto aos feácios; mesmo assim, continuará a afligi-lo.]
Os deuses como personificação do pensamento humano
Após Poseidon instigar grande onda, ele interrompe sua participação; Atena auxilia Odisseu (por meio de idéias).
BANNERT, Herbert (1988) Formen des Wiederholens bei Homer: Beispiele für eine Poetik des Epos. Wien: Österreichischen Akademie der Wissenschaften
BUXTON, R. (2004) "Similes and other likenesses". In: FOWLER, Robert (2004) The Cambridge Companion to Homer. Cambridge: Cambridge University Press
CLAY, J. S. (1997) The Wrath of Athena: Gods and Men in the Odyssey. Lanham, Boulder: Rowman & Littlefield. (1ª ed.: 1983)
DIRLMEIER, F. (1967) Die Vogelgestalt homerischer Götter. Heidelberg
REDFIELD, J. M. (1994) Nature and Culture in the Iliad: The Tragedy of Hector. 2ª ed. Durham, London. (1ª ed.: 1975)
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